Título: Inflação maquiada eleva carga fiscal na Argentina
Autor: Felício,Cesar
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2011, Internacional, p. A10

Em apenas dois anos, a presidente da Argentina Cristina Kirchner reverteu um cenário de dupla derrota política para a de uma reeleição certa em 23 de outubro, talvez com a maior diferença eleitoral na história do país desde 1922. Somente há 89 anos, o primeiro colocado superou mais de três vezes a votação do segundo, como pode ocorre agora. Cristina oscila entre 52% e 57% nas pesquisas, enquanto o socialista Hermes Binner, segundo colocado, não passa de 16%.

O crescimento econômico é a chave para a guinada em relação a 2009, ano em que Cristina foi derrotada no Senado ao tentar elevar um imposto sobre a exportação de grãos e em seguida perdeu a maioria no Congresso nas eleições de meio de mandato. A Argentina deve fechar 2011 com crescimento do PIB de 7% (segundo consultores privados) a 8,3% (pelas estimativas do governo). A continuidade do crescimento é novidade para a maioria dos eleitores. Entre 1975 e 2002, o país esteve em recessão por quatorze anos alternados. Desde então, só não cresceu em 2009.

A incerteza sobre os números oficiais é justamente uma das heranças deixadas pelo falecido marido de Cristina, o ex-presidente Néstor Kirchner, que meses antes do fim do mandato, em fevereiro de 2007, interveio no órgão que calcula e inflação e o índice passou a ser manipulado. Nem mesmo o governo defende mais o IPC oficial, que aponta para este ano inflação de 9,3%. Há consenso entre operadores políticos e econômicos que o índice real oscila entre 18% e 25%.

Mas o tema não entrou na campanha eleitoral pois os aumentos salariais acima de 30% que marcaram as negociações no ano passado com os dez principais sindicatos superaram a variação de preços. Nesta sexta-feira, num encontro empresarial em Mar del Plata, foi divulgada uma pesquisa com de cerca de mil dirigentes de empresas voltadas para o mercado interno. Deles, 49% afirmaram que deram em 2010 reajustes à mão de obra acima do que repassaram a preços. Um terço disse que igualou os índices, e apenas 18% apontaram um aumento de margem.

Alimentada por um crescimento econômico impulsionado pelo consumo, que não foi acompanhado de uma expansão na produção, a inflação encoberta foi paradoxalmente benéfica para o governo do ponto de vista fiscal. "Esta inflação fez com que subisse a carga tributária na Argentina, mesmo sem a criação de novos impostos", afirmou Federico Sturzenegger, presidente do Banco Ciudad, pertencente ao governo municipal de Buenos Aires, que é o principal bastião da oposição, sob comando do prefeito Mauricio Macri.

Segundo Sturzenegger, o balanço das empresas continua a ser expresso em termos praticamente nominais, na ausência de um deflator válido, o que faz com que os lucros inflem e a carga tributária cresça. Ela passou, em quatro anos, de 27% para 32,5% sobre um PIB que só não cresceu em 2009. "Foi isto, além da apropriação dos recursos dos fundos de pensão privados e o uso das reservas internacionais para desendividamento, que permitiu que o superávit primário fosse mantido mesmo com o aumento de gastos", afirmou.

Sturzenegger se referiu a duas medidas cruciais tomadas por Cristina após as derrotas de 2009: a primeira, de janeiro de 2010, foi o uso de reservas para o resgate de títulos, tendo para isso inviabilizado a permanência no cargo do presidente do Banco Central, Martín Redrado. Até então, o BC na Argentina era independente. A outra foi a estatização dos recursos dos fundos de pensão privatizados.

Com estes recursos, Cristina teve margem para criar programas sociais como a AUH ("asignacion universal por hijo", equivalente ao Bolsa Família no Brasil), que consome cerca de US$ 2 bilhões por ano, e para manter intocado os subsídios à energia elétrica e ao transporte na região metropolitana da capital, com um desembolso anual próximo a US$ 20 bilhões.

O crescimento argentino é impulsionado pela escalada de preço das principais commodities agrícolas que o país exporta, sobretudo a soja, e pela vitalidade da economia brasileira, principal destino das exportações. Sem participar do mercado internacional de capital desde 2002, em função de ainda existirem credores que não aceitaram a repactuação da dívida atinginda pelo "default" daquele ano, o comércio externo é a principal fonte de recursos do país.

Ainda que a relação comercial esteja deficitária com o Brasil desde 2004, o real valorizado foi essencial para a geração adicional de US$ 5 bilhões em exportações ao Brasil este ano, em comparação ao ano em que Cristina assumiu.

"O crescimento começou quando o dólar ficou abaixo de R$ 2 e, mesmo se o real perder um pouco de valor e ficar na faixa de R$ 1,90, seguiremos muito competitivos", comentou o presidente da associação das montadoras argentinas (Adefa), Aníbal Borderes. Com o uso de mais de 80% da capacidade instalada, as montadoras argentinas exportam cerca de metade da produção de 800 mil automóveis por ano para o Brasil. Empresas como a Fiat destinam 85% de sua produção ao mercado brasileiro.