Título: Crack: na companhia do medo
Autor: Goulart, Guilherme
Fonte: Correio Braziliense, 29/08/2010, Cidades, p. 34

Estimativa da Secretaria de Segurança Pública revela que 27% dos crimes registrados nas delegacias, no primeiro trimestre de 2010, estão associados ao tráfico, especialmente do subproduto da cocaína. Grupo voltado ao desenvolvimento de ações contra a droga se reúne a partir de terça-feira

O comerciante André Augusto*, 31 anos, convive com o medo. Responsável por uma padaria de uma quadra do fim da Asa Norte, incorporou à rotina diária a insegurança e a angústia. Assim como ele, quase todos os vizinhos de comércio carregam pelo menos uma história de violência no último ano. A maioria delas por conta de ações de bandidos ligados ao tráfico e ao uso de drogas. Aqui, todo mundo trabalha com medo. Fecho às 21h. Não tenho coragem de trabalhar depois desse horário. Na hora de fechar, coloco meu carro em um lugar estratégico, tranco tudo e saio logo daqui, contou.

O crack aparece como o principal vilão para tal comportamento. O consumo das pedras traumatiza e assusta os candangos. Assaltos, ameaças e até mortes relacionados ao entorpecente de alto poder de destruição se tornaram rotina em uma capital atormentada pelo aumento da criminalidade. Estimativa da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) revelou que 27% dos crimes registrados nas delegacias estão associados ao tráfico de drogas, principalmente do crack. É preocupante, resumiu o subsecretário de Planejamento e Capacitação da SSP-DF, coronel Washington Rodrigues Lima.

A porcentagem se refere à análise do total de ocorrências do primeiro trimestre deste ano e à tendência de piora do problema. Provocou ainda o I Simpósio sobre Métodos de Enfrentamento à Disseminação do Crack, realizado na semana passada no auditório do Ministério Público do DF. O subsecretário foi o mediador do encontro, que procurou sensibilizar a sociedade brasiliense sobre a gravidade da situação. Participaram diversas secretarias de Estado, entre elas Segurança, Saúde e Educação, ONGs e representantes da imprensa.

As discussões serviram para a criação de um grupo de trabalho voltado para o desenvolvimento de estratégias e organização de ações integradas contra o crack. Há representantes dos poderes Executivo e Judiciário locais, do Ministério Público do DF e de entidades sociais. A primeira reunião tem data marcada: terça-feira. O uso do crack já provocou dois fenômenos na capital do país. O primeiro é a substituição da cola, da merla, da cocaína e até da maconha por essa droga. O outro é a associação dos viciados com outras modalidades criminosas para manter o vício, explicou o coronel Lima.

Outra dificuldade relacionada ao flagelo desse subproduto da cocaína aparece nas ruas de Brasília e de cidades como Taguatinga e Ceilândia. É cada vez mais comum a cena de grupos de homens, mulheres e crianças reunidos em torno do crack. Usam latinhas de alumínio como cachimbo para inalar a fumaça produzida pela queima das pedras. Efetivamente, a coisa está se banalizando, com o uso das pedras até durante o dia. Já se vê como uma epidemia. E temos de pensar em uma estratégia integrada de combate, defendeu o subsecretário de Planejamento e Capacitação da SSP-DF.

O Correio flagrou o consumo na área central do Plano Piloto. Entre 16h30 e 17h30 da última quinta-feira, a equipe de reportagem acompanhou o tráfico e o uso da droga no vão entre a Rodoviária do Plano Piloto e a estação de metrô do terminal rodoviário. Enquanto jovens de mochilas negociavam as pedras no gramado logo acima do local, meninos maltrapilhos se entregavam ao vício na parte mais abaixo. Faziam o uso do entorpecente sem se importar com o vaivém das pessoas próximas aos vidros da estação. No fim da tarde de sexta-feira, um homem vestido de calça e camisa sociais fazia o mesmo.

Mudança de rotina O aumento da relação entre drogas e criminalidade se reflete na rotina da população. Nas quadras residenciais do fim da Asa Norte e mais próximas da W3, onde se concentra o problema do crack, comerciantes e moradores criam sistemas próprios para não se tornarem vítimas de assaltos e ameaças. O gerente de padaria André Augusto baixa as portas às 21h, uma hora antes do horário habitual. Depois de sofrer dois furtos em 2009, passou a observar tudo ao redor. Estou sempre atento a tudo. Já chego para trabalhar às 5h30 observando tudo o que posso. Esse é o meu dia a dia estressante, afirmou.

Do outro lado da rua, outro responsável por padaria reclama da situação. O último assalto ocorreu neste ano por volta das 21h30 de um dia de semana. O dono estava no caixa e se viu diante de três bandidos armados. Não reagiu e entregou todo o dinheiro. A gente trabalha sempre apreensivo. Vai com a cara e com a coragem, explicou Ana Paula*, mulher da vítima. Segundo ela, a ansiedade e a insegurança aumentam a partir das 19h. Depois disso, não se trabalha mais com calma. É a hora em que a noite cai e não se vê mais policiamento, denunciou.

A comerciante Ana Paula acrescentou que há policiamento regular na quadra comercial feito por duplas de policiais militares até as 16h. A falta de proteção do governo obrigou a família a encerrar a atividade diária meia hora antes aos fins de semana. Também pensa em instalar sistema eletrônico de segurança e contratar seguranças privados. O problema ainda aumenta no fim de semana, quando não tem polícia e fica tudo muito deserto, disse. Lotéricas e drogarias locais também sofreram ações recentes de bandidos, a maioria associada ao tráfico e ao uso de drogas.

O medo também atinge a Asa Sul. A publicitária Janaína*, 29 anos, mudou a rotina para não ficar exposta a possíveis assaltos e sequestros relâmpagos. A moradora da 109 Sul sai mais cedo do trabalho para deixar o carro em uma vaga mais próxima à guarita do prédio. Deixa muitas vezes de sair à noite para não ficar sem um espaço para estacionar na volta para casa. Está tudo bastante complicado por aqui. A gente ouve de casa barulho de briga e discussão. Já tomei um susto pela manhã, quando um homem veio me pedir dinheiro e estava bastante alterado, comentou.

* Os nomes são fictícios a pedido dos entrevistados