Título: Uma alternativa ao gás natural boliviano
Autor: Adriano Pires e Rafael Schechtman
Fonte: Valor Econômico, 26/05/2006, Opinião, p. A10
A crise da Bolívia mostrou a urgência de se encontrar alternativas confiáveis ao gás natural boliviano. Várias propostas têm sido consideradas, tais como a aceleração da oferta doméstica e a importação de gás natural liquefeito (GNL). Uma terceira alternativa pouco discutida e complementar às demais é o uso de embarcações para transporte de gás natural comprimido (GNC), um conceito há algum tempo desenvolvido para aproveitamento de gás natural desperdiçado (stranded gas).
Esta alternativa viabilizaria o aproveitamento econômico do gás queimado e parte do gás reinjetado na Bacia de Campos. O GNC, assim como o gás natural veicular (GNV) de uso difundido no Brasil, é obtido pela compressão do gás em cerca de 200 vezes, de forma tal que um metro cúbico de GNC contém 200 vezes a massa do mesmo volume de gás natural. Diferentemente do gás natural liquefeito (GNL) - uma outra forma utilizada para o transporte marítimo do gás em navios metaneiros após liquefazê-lo a temperaturas de 160ºC abaixo de zero - o GNC permanece gasoso, não requerendo os vultosos investimentos dos navios metaneiros e plantas de liquefação e regaseificação. Dependendo da distância, o custo de transporte das embarcações é inferior aos dos gasodutos ou navios de GNL.
Vários estaleiros e armadores nos EUA, Canadá, Noruega, Japão e Coréia já desenvolveram projetos deste tipo de embarcação e obtiveram atestados de entidades certificadoras. A operação das embarcações é bastante simples comparada a dos navios metaneiros. Em uma primeira etapa, o navio aporta nas proximidades das plataformas marítimas de produção, onde o gás é comprimido e transferido para o sistema de armazenagem. Na segunda etapa, de volta ao continente, descarrega-se o gás na rede local de gasodutos ou diretamente para uso em uma termelétrica.
Cada embarcação de GNC transporta de 6 a 15 milhões de metros cúbicos de gás e seu custo estimado situa-se entre US$ 100 milhões e US$ 120 milhões. Dependendo da localização da área de produção, duas a quatro embarcações são empregadas para garantir um fluxo contínuo de gás. O custo de transporte varia entre US$ 0,50 e US$ 1,20/ MMBTU, conforme a distância e o volume transportado, sendo que o investimento na embarcação representa 90% deste custo. Esta é outra vantagem econômica da embarcação sobre o gasoduto, pois seu investimento não representa um "sunk cost", já que, esgotada a produção de uma área, ela pode operar em outra.
O uso de embarcações de GNC, além de incrementar o aproveitamento do gás natural, atualmente desperdiçado, também estimularia a indústria naval nacional em sua construção, com geração de empregos em toda sua cadeia produtiva, sobretudo no Estado do Rio de Janeiro.
Oferta doméstica só será significativa a partir de 2010; até lá, país deve buscar a diversificação do suprimento de GNC e GNL A queima de gás na Bacia de Campos tem sido crescente. Em 2005, foram queimados 3,6 milhões de m³/dia , 32% mais do que em 2004. Isso representou 30% dos 12 milhões de m³/dia de gás disponível na região. Para se ter uma idéia, esse gás desperdiçado corresponde a mais de 27% da venda de gás no Rio de Janeiro e 36% da venda em São Paulo. A reinjeção, por sua vez, atingiu 1,4 milhões de m³/dia, em 2005, o que representa, respectivamente, 14% e 11% das vendas de gás no Rio e em São Paulo.
No ano passado, a Bacia de Campos produziu 45% do gás e 84% do petróleo nacional em 2005. Como o gás produzido se encontra associado ao petróleo, o ritmo de produção do primeiro está ligado ao do segundo. O aproveitamento comercial dos dois produtos, no entanto, se dá de forma diferente. O do petróleo, por ser menos complexo, requer menores investimentos por unidade de valor transportado. Já o aproveitamento do gás requer um sistema para a sua coleta nos diversos campos produtores, gasodutos submarinos destinados a seu transporte até a terra e unidades de processamento antes de seu consumo. Caso não se disponha dessa infra-estrutura, o gás é reinjetado no campo produtor ou queimado no local.
Muitos países, como, por exemplo, a Noruega, proíbem ou, pelo menos, restringem severamente a queima de gás, seja por sua irracionalidade, seja por razões ambientais. A reinjeção pelo menos oferece a oportunidade de uso futuro do gás. No entanto, a reinjeção de grandes volumes requer elevados investimentos em compressores. Em países, como a Noruega, que proíbem a queima, muitos campos de petróleo com gás associado acabam não sendo desenvolvidos dada a inviabilidade econômica da reinjeção.
Com o consumo nacional de gás crescendo 21% a.a. e as vendas das distribuidoras de gás do Sudeste crescendo 12% a.a. em 2005, e diante dos obstáculos nas importações da Bolívia e Argentina, o alto percentual de desperdício de gás não pode mais ser justificado pela ausência de mercado para sua comercialização.
Antes da inauguração do gasoduto Bolívia-Brasil, o consumo de gás natural brasileiro era de apenas 18 milhões de m³/dia. Desde então, enquanto a produção nacional aumentou apenas 38%, o consumo cresceu 177%, especialmente no governo Lula, que promoveu um programa de massificação do uso do gás natural mediante o congelamento de suas tarifas pela Petrobras, e o Brasil se tornou refém do gás boliviano. A melhor alternativa para livrar o país desta situação é o aumento da produção nacional. Entretanto, o peso da oferta doméstica no consumo total só será significativo a partir de 2010, com a plena produção na Bacia de Santos. Enquanto isso, o país deve buscar a diversificação do suprimento através do transporte marítimo de GNC e de GNL. Caso contrário, para se livrar do racionamento, resta aos brasileiros rezar por Nossa Senhora de Copacabana, a padroeira da Bolívia, para que o país vizinho não aumente o preço do gás ou, na pior hipótese, corte o seu fornecimento ao Brasil.
Adriano Pires e Rafael Schechtman são diretores do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE) e professores da UFRJ.