Título: Na economia, um segundo mandato difícil para Cristina
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Fonte: Valor Econômico, 20/10/2011, Opinião, p. A10
A presidente argentina Cristina Kirchner caminha para uma reeleição triunfal em primeiro turno no domingo, embalada pelo crescimento acelerado da economia argentina e pela fragmentação e desorientação política das oposições. É praticamente certo que seu segundo mandato manterá o tom personalista que caracterizou o kirchnerismo, o autoritarismo no tratamento com a imprensa, o populismo que guiou várias ações públicas com objetivos eleitorais e o dirigismo voluntarista como mola mestra da política econômica. É menos certo saber as mudanças que o governo fará - ou terá de fazer - para enfrentar uma desaceleração razoável da expansão econômica e o possível aumento da inflação, que há quatro anos está na casa dos dois dígitos e situa-se ao redor de 25% - 11% em 2011, segundo os índices oficiais manipulados do Indec.
O Produto Interno Bruto argentino cresceu 9,1% no segundo trimestre do ano, apenas um pouco menos que o chinês. Em um ano eleitoral, esse já seria um trunfo expressivo para a incumbente. Mas Cristina não se desligou da matriz de seu antecessor, o marido Néstor, e não descuidou do uso da máquina do Estado para agradar eleitores, com a distribuição de eletrodomésticos, uma série de programas sociais que até inclui um "Milanesa para Todos", a venda de carne a preços mais de 30% inferiores aos dos supermercados. Mas há pressões evidentes se formando na economia e a gastança eleitoral terá de dar lugar a uma correção de rumos no segundo mandato.
Os gastos públicos cresceram a um ritmo superior ao das receitas. Segundo consultores privados, nos últimos 12 meses as despesas avançaram 35,3% ante uma arrecadação 20,3% maior. Os dispêndios do Estado são apenas um dos ingredientes expansionistas em ação, que poderão colocar a Argentina diante de uma espiral inflacionária perigosa. Eles se somam ao boom de consumo alimentado por uma taxa de câmbio valorizada, que barateia as importações.
O comércio externo argentino depende basicamente do comportamento da economia brasileira e da evolução dos preços das commodities agrícolas. A retração das principais economias desenvolvidas pode ter pressão baixista nas commodities, e o Brasil deve crescer menos da metade do que os 7,5% de 2010. Ambos reduzirão substancialmente os superávits comerciais do país, que já vêm caindo nos últimos meses. Se não tem controle sobre as exportações, a Argentina terá de usar mais do mesmo em relação às compras do exterior. Limitada pelos mecanismos do Mercosul, ela intensificou as espertezas das licenças não automáticas - em janeiro, produtos sujeitos a ela saltaram de 400 para 600 - para proteger sua indústria e gerir o saldo comercial. É pouco provável que, com o encolhimento da economia, a atitude protecionista mude muito.
As reservas de US$ 50 bilhões dão alguma garantia contra uma desvalorização descontrolada da moeda, mas isso também é algo inseguro dentro da equação da política econômica de Cristina. Os compromissos externos a serem pagos em 2012 somam US$ 9,1 bilhões e o mercado internacional continua fechado para o país depois do calote de 2001. O prêmio de risco para a Argentina está em torno de 13%, alguns centésimos acima do de Portugal. Há uma fuga de capital, que no primeiro semestre chegou a US$ 9,8 bilhões e que deve fechar o ano com o dobro disso. Ela não pode ser debitada às incertezas eleitorais. A sinais de descontrole inflacionário, os argentinos reagem automaticamente comprando dólares. A inflação corrente não pode ser mantida por muito mais tempo sem desorganizar a economia.
A saída de dólares elevou a taxa interbancária (call money), pela qual os bancos compram e vendem dinheiro por um dia, em um ritmo preocupante. Ontem ela atingiu 19,5% ao ano, quando no início do mês estava em 9,75% ("La Nación", 18 de outubro). Mesmo assim, os juros reais na Argentina são negativos, o que incentiva o consumo e reduz o custo do financiamento do débito público. Mas empurra para cima a inflação, que ainda recebe impulsos populistas. Em um ano eleitoral, o salário mínimo foi reajustado em 25% - e não há como dizer que teve aumento real. Com o governo certo da vitória, os sinais emitidos pela Casa Rosada são de possível alteração na Constituição para dar a chance de nova reeleição a Cristina. Tanto poder pode ser inútil. Sem um modelo mais equilibrado, a Argentina pode naufragar novamente a médio prazo.