Título: Casuísmo na reforma das normas cambiais
Autor: Daniel Gleizer
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2006, Opinião, p. A10

Nos últimos dias voltou à tona a discussão sobre a adoção de medidas de liberalização cambial. A imprensa relata que o governo está estudando a antecipação de algumas das medidas contempladas no projeto de reforma da lei cambial, em tramitação no Congresso Nacional, considerando, inclusive, a utilização de medida provisória como instrumento para acelerar as alterações. É amplamente conhecido o fato de que o tema da liberalização das normas cambiais é alvo de grandes controvérsias. Não discordo em absoluto que é preciso fazer uma ampla revisão de nossa legislação cambial. Mas diante da notória polêmica suscitada pela matéria, o que explica a determinação do governo em aprovar estas medidas a toque de caixa? Quais os objetivos por trás das medidas em estudo? Será que temas tão complexos e controversos, consagrados em leis e normativos, alguns dos quais datam dos anos 30, devem ser alterados por medida provisória poucos meses antes de uma eleição? Tudo indica que as mudanças estão sendo encaminhadas pelas razões erradas e de forma equivocada.

Duas medidas parecem estar em estado avançado de estudos. Uma é a permissão para que empresas exportadoras fiquem liberadas da obrigação de internar no país os recursos oriundos de suas vendas no exterior, a assim chamada cobertura cambial das exportações. A segunda é a permissão para que efetuem a compensação privada entre seus débitos e seus créditos. Estes dispositivos são elementos consagrados da legislação cambial vigente e propostas de sua revogação sempre geraram acirrada polêmica.

De fato, debates acerca da legislação cambial brasileira nos acompanham há muitos anos. Por um lado há quem a considere exageradamente rígida e burocrática e, portanto, inadequada diante das necessidades impostas por um mundo onde crescem exponencialmente as relações econômicas entre os países. Ademais, entendem que modificações são requeridas pois a atual legislação expõe a riscos e constrangimentos indevidos as empresas, instituições e indivíduos que operam no mercado cambial, pois transacionam com o exterior. Há, por outro lado, aqueles que entendem que os problemas de nosso arcabouço cambial derivam de sua excessiva liberalidade, que limitaria a capacidade das autoridades de conduzir a política econômica de forma adequada.

Deixo claro, desde logo, que me incluo entre os que entendem que a reforma da legislação cambial brasileira deve figurar de forma proeminente na agenda de reformas que objetivam modernizar a economia brasileira. O objetivo fundamental desta reforma deve ser a facilitação do processo de intercâmbio comercial, financeiro e de conhecimento entre o Brasil e o resto do mundo. Adicionalmente, ela deveria reduzir os riscos e constrangimentos indevidos a que estão expostas as empresas, instituições e os indivíduos que transacionam no mercado cambial. Mas esta é uma descrição excessivamente genérica. É preciso ir muito mais além e detalhar as respostas a diversas perguntas, tais como: O que precisa ser alterado? Com que objetivo? Quais os custos e benefícios das mudanças contempladas? Como fazê-lo? Quais os riscos associados à implantação de novas regras? A tramitação do projeto de lei complementar 32/2006 seria uma excelente oportunidade de debater estas questões. O projeto padece de problemas sérios de concepção e, por isso mesmo, sua discussão e aprimoramento, tendo como objetivo final a revisão das normas cambias de forma a tratar aspectos estruturais de nossa inserção internacional, seriam bem-vindos.

O objetivo desta reforma deveria ser facilitar o processo de intercâmbio comercial e financeiro entre o Brasil e o mundo Os méritos e deméritos das medidas que, segundo foi recentemente veiculado estariam prestes a ser editadas por medida provisória, deveriam ser discutidos neste contexto e de forma ampla. A combinação destas medidas deve reduzir os custos dos exportadores. Mas seus efeitos não se esgotam aí. A mudança deve ter impactos importantes sobre o sistema brasileiro de financiamento ao comércio exterior, sobre o método de apuração do balanço de pagamentos, sobre a definição e o nível das reservas internacionais, entre outros. Mas, o problema fundamental com as medidas acima mencionadas é que elas não estão sendo contempladas como parte de um amplo processo de reforma da regulamentação cambial brasileira, baseado em um diagnóstico preciso de nossas necessidades estruturais nesta área, mas sim com o intuito de promover uma desvalorização da taxa de câmbio. Declarações de autoridades econômicas, veiculadas pela imprensa neste fim de semana, não deixam dúvida quanto a isto.

Este é um duplo equívoco: primeiro porque busca promover alterações de cunho estrutural na legislação com vistas a lidar com um problema conjuntural. É uma receita certa para problemas futuros, pois, como sabemos, é da natureza da conjuntura teimar em mudar. Em segundo lugar porque a razão mais perversa que se pode encontrar para levar a cabo uma liberalização das normas cambiais é acreditar que esta é uma forma de promover uma depreciação da taxa de câmbio. Isto porque a única forma de assegurar que este resultado será obtido é se a liberalização for considerada temporária e, portanto, geradora de volatilidade e incrementadora do risco-país.

Se o objetivo é depreciar a taxa de câmbio, o caminho não deve ser o de manipular de forma espúria a legislação cambial, mas promover uma recalibragem das políticas fiscal e monetária e remover barreiras às importações. Como isto se ganharia em termos de potencial de crescimento e sem riscos no combate à inflação. É possível ser pragmático e agir de acordo com as circunstâncias e exigências da situação concreta, sem ser casuístico. Mudanças na legislação cambial são necessárias. Mas devem ser feitas com cuidado e submetidas à ampla discussão.

Daniel L. Gleizer é ex-Diretor do Banco Central do Brasil, é Diretor Executivo do Unibanco