Título: Cana-de-açúcar faz Projeto Jaíba reviver
Autor: Ivana Moreira
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2006, Especial, p. A12

Os pés de cana-de-açúcar que começam a crescer em algumas centenas de hectares são prenúncio de novos tempos nas terras do Jaíba, o maior projeto de irrigação da América Latina, desenhado na década de 60 para preencher o vazio econômico e demográfico do extremo norte de Minas. O estigma do fracasso, que marcou a história do programa nas últimas quatro décadas, poderá ser apagado com recursos financeiros e tecnologia de ponta de grandes grupos agroindustriais do país.

Com a consultoria do Bureau of Reclamation, instituição americana especializada em projetos de irrigação, ficou definido, em 1966, que o Jaíba seria um programa para levar água do São Francisco para uma área de 100 mil hectares, à direita do rio, dividido em quatro etapas. O maior objetivo dos idealizadores do projeto era atrair grandes produtores agrícolas, inclusive do exterior, para induzir o desenvolvimento econômico no carente semi-árido mineiro.

Mas a ocupação da área irrigada, que só começou 23 anos depois, acabou privilegiando pequenos produtores. Metade das terras da primeira etapa de implantação do Jaíba foi dividida em pequenos lotes de cinco hectares para a agricultura familiar.

"A idéia de que o empresariado mataria o pequeno produtor foi um equívoco e contribuiu para o relativo fracasso do Jaíba no passado", diz o gerente-executivo do projeto, Luiz Afonso Vaz. "Um precisa do outro, é uma relação ganha-ganha." A esperança dos técnicos ligados à irrigação no Jaíba é ver grandes investimentos garantindo trabalho e renda para os pequenos produtores assentados à direita do São Francisco.

Dos 1,6 mil lotes de cinco hectares distribuídos para fomentar a agricultura familiar, entre 1989 e 1997, cerca de 40% estão abandonados ou subutilizados. Nos 60% de lotes onde a terra foi semeada, a maior parte dos pequenos produtores não conseguiu sequer pagar os empréstimos concedidos, principalmente pelo Banco do Nordeste, para custear o início da lavoura.

O baixo aproveitamento da chamada "etapa 1" do projeto (com 24,6 mil hectares irrigados) contribui para a imagem de ruína - e desperdício de dinheiro público - no Jaíba. Só o Banco Mundial (Bird) emprestou US$ 150 milhões para a gigantesca infra-estrutura de irrigação construída na primeira fase. O japonês JBIC liberou outra linha de crédito de US$ 110 milhões para a etapa 2, que tem 19,2 mil hectares irrigados.

O empréstimo do Bird foi aplicado na instalação de um sistema de bombeamento no São Francisco, com capacidade para até 80 metros cúbicos por segundo, e na construção de 244 quilômetros de canais que levam a água até os lotes. Os recursos do JBIC financiaram a construção da infra-estrutura de irrigação, mais 165 quilômetros de canais para a etapa 2.

As duas etapas finais, 3 e 4, nunca saíram. Seriam pelo menos mais 120 quilômetros de canais para irrigar mais 22 mil hectares. Essa parte da obra, se for construída, custará bem menos do que as etapas anteriores. Isso porque a estação principal de bombeamento no São Francisco, que atende o Jaíba como um todo, já está pronta. "É uma infra-estrutura de impressionar que está aí, pronta, e não pode ser abandonada", diz Fernando Sena, chefe de projetos da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf).

O Distrito de Irrigação do Jaíba passou a existir, por decreto, oito anos depois de ser idealizado, em 1972. Uma década mais tarde, em 1983, os governos federal e estadual ainda não haviam conseguido levantar recursos para realizar a obra e engavetaram o projeto.

Só em 1986, quando a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) incluiu o Jaíba em suas prioridades, o Brasil conseguiu recursos do Banco Mundial para a irrigação da primeira etapa. Mas, como agente financiador, o banco determinou a inversão da opção por grandes empreendimentos agrícolas, dando prioridade aos pequenos produtores.

A área de 24,6 mil hectares da primeira etapa foi dividida em 1,8 mil lotes de cinco hectares, destinados aos pequenos, e 350 lotes com áreas entre 20 e 50 hectares para médios produtores. De acordo com os critérios do Bird, tiveram prioridade famílias mais numerosas, independentemente de ter ou não experiência com agricultura. O entendimento era de que mais filhos significavam mais braços para trabalhar a terra. O que se mostrou, na prática, um dos grandes equívocos da ocupação. Famílias sem nenhuma tradição de vida no campo não conseguiram prosperar. Independentemente do número de filhos que tinham. Por outro lado, chefes de famílias habituados à dura "lida" da roça conseguiram dar conta praticamente sozinhos dos cinco hectares do lote. E faltou trabalho para ocupar os filhos dessas famílias. Foi o que constatou uma pesquisa realizada pela Codevasf para levantar o número de lotes abandonados e subutilizados e os motivos que levaram ao abandono.

Com a lista desses lotes nas mãos, a equipe da estatal federal - encarregada dos assentamentos na etapa 1 - está negociando com os pequenos agricultores. Quem quiser uma segunda chance terá orientação técnica e um prazo de dois anos para começar a colher.

Sem a gerência do Banco Mundial, a etapa 2 foi desenhada com propósito empresarial. As obras de infra-estrutura, no entanto, ficaram paralisadas por vários anos. Só no fim de 2003, o governo mineiro - responsável pela coordenação da ocupação na etapa 2 - conseguiu abrir a licitação para vender os 684 lotes divididos em áreas entre 10 e 90 hectares. No leilão público, onde foram vendidos todos os lotes, o ágio chegou a 97%.

Antes de abrir a licitação, Luiz Afonso Vaz fez apresentações para grupos empresariais de outros Estados, especialmente de São Paulo e da Região Sul. A infra-estrutura já implementada - além do sistema de irrigação, o asfaltamento das rodovias que levam ao extremo norte de Minas - e o preço das terras foram os principais atrativos. Enquanto um hectare no interior de São Paulo pode chegar a R$ 35 mil, a mesma área no Jaíba saiu por menos de R$ 1,5 mil na licitação da etapa 2. Cada um dos 135 empresários selecionados na licitação comprou, em média, áreas de 300 hectares, unindo vários lotes.

Em abril, vários empresários estiveram visitando o projeto, de olho num resíduo de terras da etapa 1. Um dos grupos, uma multinacional ligada ao setor de energia, tem planos muito superiores aos hectares disponíveis na próxima licitação. Procura 12 mil hectares para plantar cana-de-açúcar.

Grupos usineiros que já investem no plantio de cana em terras do Nordeste e do Triângulo Mineiro, também já demonstraram interesse para futuras expansões. "O Jaíba está renascendo de uma forma diferente", diz o secretário de Agricultura de Minas, Marco Antônio Rodrigues da Cunha.

Se, no passado, um dos obstáculos foi levantar empréstimos internacionais para construir a infra-estrutura, Cunha acredita que a realidade atual oferece novas alternativas. Segundo ele, a Parceria Público-Privada (PPP) poderá ser uma modelagem adequada para a construção da extensão dos canais de irrigação e a complementação do Projeto Jaíba.

O secretário e todos os agrônomos ouvidos pelo Valor, que trabalham direta ou indiretamente com o projeto, acreditam que o Jaíba pode se tornar uma referência mundial em irrigação quando totalmente implementado. No norte de Minas, o custo por hectare foi de menos de US$ 5 mil. Nos projetos de irrigação dos Estados Unidos, o custo médio é de US$ 12 mil. Nos de Israel, US$ 25 mil.

A estimativa é que, quando os 67 mil hectares estiverem em produção, o Jaíba terá 181 mil empregos. A produção de alimentos deverá somar 2,3 milhões de toneladas por ano, com um faturamento anual de pelo menos R$ 522 milhões. Os cálculos foram feitos antes da chegada da cana-de-açúcar, tendo como referência a fruticultura, que é a base da produção atual. A expectativa é de que, com a lavoura da cana, essas estimativas possam ser refeitas com resultados ainda melhores.