Título: Ação contra os piratas da biodiversidade
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 22/05/2006, Brasil, p. A2

Empresários espertos pediram, na União Européia e nos Estados Unidos, o registro da marca "açaí" para produtos alimentícios; no Japão, pedido semelhante foi feito para nomes que designam várias espécies da biodiversidade cultivadas no Brasil, como acerola, caju, palmito e até fruta do conde (conhecida como ata, no Nordeste). Esse tipo malandro de registro ameaça criar barreiras para exportadores brasileiros de um dos setores onde é maior a competitividade do produtor nacional, o setor de alimentos baseado na riqueza dos recursos naturais do Brasil. O governo começa, hoje, a agir preventivamente contra esse tipo de pirataria.

Como aconteceu com o cupuaçu, registrado há alguns anos como marca pela empresa japonesa Asahi Foods, no Japão e União Européia, o registro de algum desses nomes em escritórios de marcas no exterior poderia impedir o produtor brasileiro de vender, lá fora, a fruta (ou suco, ou doce, ou qualquer alimento) com o nome pelo qual é conhecida aqui no país. Os ladrões de marca chegaram a pedir, na União Européia, registro para nomes como copaíba e andiroba, árvores com óleos de grande potencial de exportação.

No caso do cupuaçu, as autoridades brasileiras acionaram a empresa, questionaram o registro nos escritórios no exterior, e fizeram a Asahi abrir mão da marca. O processo, porém, pode ser demorado, e a generalização da prática de "piratear" nomes comuns da biodiversidade brasileira poderia criar sérios obstáculos para empresas brasileiras de menor porte interessadas em explorar o mercado externo.

Pelas regras que regem o controle internacional de marcas, um produtor até pode registrar um nome comum, desde que o registro não se refira ao setor onde esse nome é usado como genérico. É isso que permite a existência de uma empresa de computadores com a marca "apple", mas impede o registro desse nome para designar produtos à base de maçã.

País começa a contatar órgãos de vários países O registro do cupuaçu chegou a criar problemas para exportadores brasileiros até que se conseguiu a revogação do registro. Alertado por esse precedente, o governo começa hoje uma ação preventiva. Uma lista, com três mil nomes científicos, desdobrados em cinco mil nomes comuns com suas variantes no país, começa hoje a ser distribuída aos órgãos de registros de marcas do mundo todo.

Não apenas os escritórios nacionais, mas também a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) receberá a lista, que vai sem acentos ou cedilhas, para evitar problemas na transcrição em países onde esses caracteres não são usados. O governo ainda avalia se tem algum efeito legal o envio da relação também para registro na Organização Mundial do Comércio (OMC). Além de informar aos órgãos de registro estrangeiros, a lista deve servir para facilitar a defesa em processos contra marcas concedidas indevidamente.

Como se nota pelo tamanho da lista - que na soma de nomes científicos e comuns chega a 6,7 mil itens -, é grande a quantidade de alvos potenciais na biodiversidade. Foram escolhidos, até agora, só produtos já comercializados. O caju, conhecido na ciência como anacardium giganteum, alvo de tentativa de registro no Japão, entra com todos seus apelidos e variedades regionais, como cajuí, caju-açú e caju da mata. A raiz que os cientistas chamam de manihot esculenta comparece também com nomes mais populares, como mandioca, ou cassava. A acerola, produto originário das Antilhas, é apenas um dos produtos da lista que, embora não sejam nativos, são cultivados no país.

A ação iniciada hoje (precedida por uma extensiva pesquisa em diversos órgãos do governo, para formação da lista) é uma demonstração de como a promoção do comércio exterior está vinculada a temas cada vez mais complexos, que fazem parte das negociações comerciais internacionais, embora ganhem pouca atenção, eclipsadas por temas mais conhecidos, como as tarifas de importação ou subsídios aos produtores.

A defesa dos nomes associados à biodiversidade, de uso comum no Brasil é só uma das frentes da batalha brasileira para abrir caminho aos exportadores baseados na riqueza natural brasileira. O próximo passo será tomado pelo Brasil em associação com outros países de grande diversidade de fauna e flora, como Índia, Malásia e Colômbia, na Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses países formalizarão uma proposta de emenda ao acordo conhecido na OMC como Trips, que regulamenta a defesa dos direitos de propriedade intelectual, para compatibilizar as normas do comércio internacional com a Convenção de Diversidade Biológica. A emenda tenta garantir direitos previstos pela convenção, hoje deixados em segundo plano pelas grandes empresas internacionais, como a garantia de remuneração pelo uso de conhecimentos tradicionais de populações dos países em desenvolvimento.

A mudança pretendida pelo Brasil e seus aliados afeta particularmente as indústrias farmacêuticas, que hoje usam livremente informações obtidas, por exemplo, com base em conhecimentos tradicionais de populações indígenas. Há temas, como esse das marcas e patentes, que não são assunto relevante apenas em país rico.