Título: Salário mínimo de R$ 300, uma opção questionável
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 08/12/2004, Opinião, p. A13

A imprensa tem noticiado que setores do governo estariam defendendo a idéia de que o salário mínimo (SM) de 2005 deveria ser fixado em R$ 300. Na essência desse debate, está a proposta do presidente da República, expressa quando candidato, em 2002, referente a essa variável, e ratificada a poucos dias da realização das eleições, quando em uma muito comentada entrevista a uma revista semanal, na condição de candidato naquela altura já francamente favorito, declarou: "Estou propondo criar as condições para dobrar o poder aquisitivo do SM em quatro anos. Não é muito e não vai pesar. Espero provar que o SM tem que ser visto como renda e não como custo ... O dinheiro vai voltar para o mercado no dia seguinte. É por isso que estou convencido de que as prefeituras podem pagar, estou convencido de que a Previdência pode pagar, na medida em que a gente recupere concomitantemente o trabalho formal neste país" (entrevista de Luiz Inácio da Silva a "IstoÉ", 02/10/2002). É natural, diante disso, que militantes históricos do Partido dos Trabalhadores (PT) pressionem no sentido de que o presidente Lula honre suas promessas de campanha e decrete um aumento expressivo do SM para vigorar a partir de maio do ano que vem. A prudência, porém, recomenda que o presidente não siga esses conselhos. Aumentar o SM para R$ 300 no ano que vem constituiria um erro tríplice. Em primeiro lugar, pelo custo fiscal. O Brasil está a caminho de ter 23 milhões de benefícios do INSS, dos quais em torno de 2/3 com valor exatamente de um SM. O cidadão comum pode pensar que R$ 300 é irrisório, mas ele, multiplicado por 15 milhões de pessoas que recebem o piso previdenciário e pelos 13 pagamentos feitos ao longo do ano, corresponde à bagatela de quase R$ 60 bilhões, o que significa que só com esse valor "irrisório" seriam gastos mais de 3 % do PIB. Um incremento real de 8 % a 9 % incidente sobre a principal variável determinante da trajetória da situação fiscal, constituiria um ônus significativo para as contas públicas. A segunda razão pela qual a medida seria um erro, é que representaria uma péssima sinalização acerca do comprometimento com a austeridade fiscal ao longo da segunda metade do mandato do presidente Lula, colocando assim em risco o esforço de construção de uma boa reputação, tão arduamente empreendido ao longo desses últimos dois anos, para compensar os receios que existiam sobre a responsabilidade fiscal do PT, à luz da tradicional pregação contra os superávits primários elevados entre 1999 e 2002. Ressalte-se que há uma clara correlação entre a trajetória de queda do risco-país ao longo dos últimos 6 meses - quando desabou do pico de mais de 700 pontos, observado em maio, para o atual nível da ordem de 400 - e a forte sinalização dada pelo presidente da República, justamente, em maio de 2004, quando resistindo a fortes pressões, teve a coragem de se opor ao canto de sereia de áreas do seu próprio partido e sustentar politicamente a postura do ministro Palocci de se manter firme na defesa de um SM de R$ 260.

Ou o Brasil acaba com a superindexação do piso previdenciário, ou a superindexação do piso acaba com o Brasil

Ter adotado essa postura fiscalmente apropriada em 2004, em um ano em que a economia acabou crescendo mais de 5 %, e em contraste dar um aumento muito maior em 2005 em um ano em que provavelmente a economia vai crescer menos de 4 %, como promete ser 2005, poderá passar a imagem de que o governo resiste às teses populistas quando o que está em jogo é a reeleição dos prefeitos, mas adere às teses que antes criticava quando o que está em jogo é o poder federal. Isso poderá afetar a credibilidade da política econômica, em um momento-chave, em que será necessário consolidar os esforços do que foi feito em 2003/2004, reforçar a poupança do governo e criar espaço para ampliar o investimento. Finalmente, a razão principal pela qual um aumento do SM para R$ 300, estendido ao piso previdenciário, seria um erro, é que a medida seria ineficaz para alcançar os supostos objetivos, relacionados com a melhoria da situação social. Isso porque: a) quem recebe o salário mínimo no Brasil não se localiza na extrema pobreza, pois quem é extremamente pobre, ou não tem renda ou ganha menos do que o SM; b) aumentar o SM não melhora a distribuição de renda, do que a evidência dos últimos dez anos no Brasil é a prova mais eloqüente; houve aumento real acumulado de mais de 50 % dessa variável desde 1994, e o índice de Gini continua parecendo o eletrocardiograma de um morto, em torno de 0,60; e c) a situação social está intrinsecamente ligada, no Brasil de hoje, ao fenômeno da violência, que se relaciona com a situação e a ausência de perspectivas de futuro dos jovens na faixa de 15 a 25 anos, e não com a renda dos aposentados. Em 1988, o Brasil gastava, com aposentados e pensionistas do INSS, 2,5 % do PIB, e hoje gasta 7,8 % do PIB, aproximadamente, se computadas as despesas assistenciais do Loas e das rendas vitalícias, fenômeno esse associado à pressão sistemática que o aumento do valor real do piso previdenciário tem exercido sobre esses gastos desde 1994. Não adianta querer mudar as regras contábeis do FMI para aumentar os investimentos, se paralelamente não reduzimos o peso relativo das despesas correntes, que tem crescido aceleradamente no Brasil. Parodiando a famosa frase sobre a saúva, dir-se-ia que ou o Brasil acaba com a superindexação do piso previdenciário, ou a superindexação do piso previdenciário acaba com o Brasil. Cabe, por último, uma reflexão. Se tomarmos como base de comparação o começo do Plano Real, o cidadão honesto, que paga todos os seus impostos em dia, suportava naquela época uma carga tributária de 28 % do PIB, e em 2004 convive com uma de mais de 36 % do PIB. Enquanto isso, uma pessoa que nunca contribuiu e recebe um benefício assistencial, tem um poder aquisitivo 50 % maior - pago pelo aumento dos impostos. Isso é justo? Faz sentido agravar essas distorções? O leitor está com a palavra.