Título: Crise metropolitana é a pólvora do PCC
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 22/05/2006, Política, p. A6

O PCC originou-se nos presídios paulistas, em 1993, e não nos dias de pânico que tomaram conta de São Paulo no fatídico maio de 2006. Sua trajetória é a de uma organização criminosa que se desenvolveu com o vertiginoso aumento do número de presos no Estado e com a piora das condições de segurança nas cadeias, onde cada vez mais a barbárie vence a ordem. Soluções estritamente no campo das políticas de Segurança, bem como medidas para atacar a ilegalidade das fontes financeiras do crime organizado, são fundamentais para atacar o problema. Com tais ações, o Primeiro Comando da Capital poderá até ser dividido, enfraquecido, quem sabe mesmo desmantelado, inclusive (ou sobretudo) por lutas intestinas entre os membros da organização, pois o poder neste meio é tão atraente quanto precário. Mas o combustível para tais grupos criminosos está do lado de fora das prisões, e vai além das definições amplas e imprecisas vinculadas à miséria, à desigualdade ou à falta de educação. A pólvora do PCC tem uma raiz histórica claramente identificada no Brasil atual: a crise metropolitana.

Não se pretende aqui negar o legado histórico negativo contido nas bases escravistas da sociedade brasileira, o qual, como percebera Joaquim Nabuco às vésperas da abolição, afetou os senhores tanto como ou até mais do que os escravos. A violência no Brasil sempre teve uma forte relação com a manutenção da desigualdade social, que cismava em não se alterar mesmo em períodos de desenvolvimento e crescimento econômicos. A falta de um projeto educacional que fosse a espinha dorsal da nação produziu um enorme paradoxo: renegou a muitos as oportunidades de serem incluídos num país que passou por uma extraordinária modernização no século 20. No plano temporal mais próximo, os líderes políticos dos anos 1990 não conseguiram nem salvaguardar os direitos humanos de toda a população, tampouco criaram um sistema de justiça mais eficaz e capaz de desestimular ou punir mais rigidamente as práticas criminosas.

Há muitas causas e de natureza distinta. Algumas mais estruturais, baseadas em raízes históricas mais profundas, ao passo que outras são mais conjunturais, relacionadas a imperfeições de nossas instituições e elites políticas atuais. O importante é localizar qual fenômeno histórico tem maior influência como combustível de grupos como o PCC, podendo dar a ele a oportunidade de colocar de cabeça para baixo a ordem social. Bem pior do que isso: é preciso descobrir porque organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital conseguem ter poder de atração sobre milhares de jovens e habitantes da periferia.

Singularidade do programa social em São Paulo A crise metropolitana é, ao mesmo tempo, confluência e ativadora das causas da criminalidade urbana contemporânea. Em São Paulo a desorganização urbano-metropolitana é mais acentuada, de modo que os incentivos à criminalidade são mais amplos e difíceis de serem atacados. Mas Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, Recife, Porto Alegre e, mais recentemente, as cidades satélites e o entorno de Brasília, também são afetados por este caos espacial. O fato é que o Brasil passou por uma urbanização muito rápida, concentrada e sem nenhum planejamento durante o regime militar. E mesmo com os avanços de algumas gestões municipais desde a redemocratização, não fomos capazes de construir as instituições e as práticas adequadas para lidar com a governança urbana das megalópoles.

Cabe ressaltar as especificidades dos problemas urbano-metropolitanos. Quando se fala no efeito da desigualdade ou da pobreza nos PCCs da vida, é importante mostrar que não se trata da miséria do semi-árido ou do Estado de fome africano. O mesmo vale para a educação, pois não faltam escolas nas Regiões Metropolitanas e seus professores, no geral, são mais bem qualificados do que os docentes do interior do Piauí, bem como elas têm mais médicos do que no Norte do país. A desorganização da infra-estrutura habitacional, a informalização de uma economia que tem renda para consumir, os contrastes entre os ricos e os pobres - tão próximos uns dos outros -, a competição política marcada pela existência, ao mesmo tempo, de republicanos e clientelistas, ambos dotados de tecnologias "modernas" para alcançar o eleitor, a convivência espacial das famílias de policiais com os criminosos, são, em suma, características que dão uma singularidade ao problema social nas metrópoles.

A natureza da crise metropolitana deriva de fatores socioeconômicos e institucionais. No primeiro campo, estariam a abrupta transformação demográfica, gerando falta de identidade social em relação ao espaço público, e a crise econômica relacionada à desconcentração industrial ocorrida na última década - problema maior na Grande São Paulo. A ação nestes casos envolve medidas e mudanças com longo prazo de maturação.

Por isso, é preciso atuar nas questões institucionais da governança metropolitana. Entre estas, destaca-se a fragilidade do desenho territorial e das políticas públicas no federalismo brasileiro. Em primeiro lugar, a distribuição de recursos tributários tem um forte viés anti-metropolitano, pois no lugar de privilegiar a distribuição de dinheiro pela quantidade de pessoas, repassa segundo o critério "número de localidades". O governo federal, por sua vez, demorou quatro governos desde o fim da ditadura para recuperar a importância da questão urbana - e mesmo assim, o fez com um ministério com poucos recursos e que não tem influencia sobre os demais. Mesmo nas políticas descentralizadoras mais inovadoras, não há ações diferentes para as áreas urbano-metropolitanas, mas um modelo comum e uniformizador para o conjunto dos municípios. Os governos estaduais não estão em situação melhor, uma vez que, em vez de incentivarem a articulação metropolitana, competem ou jogam pela divisão político-administrativa dos atores governamentais dos grandes centros urbanos.

Para reduzir as fontes sociais do PCC, é preciso reconstruir a governança metropolitana. Isto porque as melhores políticas de Segurança Pública não vão reativar a esperança dos jovens nem os mecanismos de identidade e socialização republicana da imensa periferia da Grande São Paulo.