Título: Câmbio: o isolamento do Banco Central
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 17/05/2006, Brasil, p. A2

É fortíssima a pressão de vários integrantes do governo sobre o Banco Central (BC) por causa da valorização do real frente a outras moedas, principalmente, o dólar. À dupla de ministros que representam setores produtivos - Luiz Fernando Furlan, do Desenvolvimento, e Roberto Rodrigues, da Agricultura - somou-se recentemente o titular da Fazenda, Guido Mantega, fortalecendo o coro dos descontentes. É a primeira vez, em muitos anos, que o Ministério da Fazenda não se alinha com a diretoria do BC em temas cruciais da política econômica. A rigor, hoje, só há divergências. Em todas as áreas. Na fiscal, na monetária e na cambial.

A cantilena do câmbio chegou ao Palácio do Planalto num momento delicado: o ano é eleitoral. Nessas horas, os políticos, especialmente diante do expediente da reeleição, se mostram mais sensíveis a demandas, mesmo quando o debate é conduzido de forma enviesada e superficial.

O assunto desembarcou de maneira mais forte nas cercanias do presidente Lula por causa da crise da Volkswagen e de alguns setores da agricultura. Um estudo recente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), atribuindo à apreciação do câmbio a suposta perda de competitividade das empresas brasileiras - de algo entre 35% e 40% desde o ano 2000 -, também contribuiu para formar opiniões na cúpula do governo.

Em áreas técnicas do governo, há um visível desconforto com o fato de o debate estar dominado pelos setores que estão perdendo com o câmbio e, mais ainda, com o fato de ministros estarem encampando o lobby sem que o tema seja discutido com racionalidade. Como se sabe, não são todos os setores da economia que estão perdendo. Eles não são nem mesmo a maioria.

O que se alega, entre técnicos do governo, é que a taxa de câmbio está, neste momento, em seu "patamar histórico", pré-crise de 2002. O raciocínio é o seguinte: de 1995 a 1999, o real esteve, na comparação com o dólar, abaixo de R$ 1,20 por causa do regime de câmbio fixo. Com a flutuação a partir de 1999, ele chegou, no ano 2000, a pouco mais de R$ 2,00, num período em que os fundamentos da economia eram piores do que os atuais.

Em 2001, o câmbio sofreu novas pressões de desvalorização por causa de dois eventos: o apagão de energia, que deprimiu o crescimento da economia, e a crise argentina. No ano seguinte, em meio à crise de desconfiança provocada pela disputa eleitoral, o real foi a R$ 3,90. A partir de 2003, como resultado de políticas responsáveis adotadas pelo governo Lula na área fiscal e do "boom" das exportações, o câmbio teria voltado ao patamar médio desde 1994, ano em que se iniciou o processo de estabilização da economia.

Fazenda se alinha à área política nas críticas ao BC O cálculo desse patamar médio ou câmbio de equilíbrio foi feito a partir de uma cesta de 15 moedas, descontando-se o diferencial de inflação dos diversos países. De 1995 a 1999, o câmbio teria estado, portanto, muito abaixo desse patamar médio; nos dois anos seguintes, estabilizou nesse patamar e, em 2001 e 2002, ficou acima.

"Sem aquela crise de 2002, possivelmente o câmbio não teria saído daquele patamar, que é o de hoje", diz uma fonte do governo. "O câmbio apreciou para seu valor de equilíbrio. A economia mundial cresceu nesse período e os preços subiram, agudizando esse processo. Paralelamente, houve uma revolução agrícola no país. Agora, não tem jeito: o processo de ajuste será penoso", prevê um assessor.

Na avaliação desses técnicos, muitas empresas brasileiras criaram plataformas de exportação com base num real artificialmente desvalorizado, ou seja, no câmbio que vigorou em 2001 e principalmente em 2002. Com a apreciação ocorrida desde então, enfrentam agora sérias dificuldades. "Não há dúvida de que é um processo sangrento, brutal, com conseqüências sociais, econômicas e políticas", reconhece um auxiliar do presidente da República, alertando, no entanto, que esse processo não é uniforme na economia e que o debate, com a atribuição de responsabilidade ao BC, está se tornando "superficial e passional".

Os críticos estão comparando o pico da desvalorização do real, em 2002, com o momento atual. Compara-se ainda essa "valorização" com o que aconteceu nos países emergentes. Esse cotejo, alegam técnicos do governo, é equivocado porque a maioria dos emergentes não sofreu a crise que o Brasil enfrentou em 2002. "Entre o início de 2001 e o pico do câmbio em 2002, houve uma desvalorização do real de 60%. E, agora, estão usando o pico para calcular a 'sobrevalorização'", critica uma fonte.

Mesmo em relação ao dólar americano, onde estão as maiores queixas quanto à valorização do real, técnicos da área econômica lembram que, apesar do diferencial de inflação entre Brasil e Estados Unidos, o dólar se desvalorizou nos últimos anos. Quando comparado ao euro, o dólar passou, em pouco tempo, de 0,90 para 1,30. "Uma parte do aumento dos preços das commodities no mercado internacional se deu, de fato, por causa do aumento da demanda. Mas uma outra parte ocorreu por causa da desvalorização do dólar em relação a outras moedas", sustenta um técnico. "O diagnóstico é enviesado politicamente", reclama um assessor.

A pressão é para que o BC acelere a compra de reservas e, assim, ajude a desvalorizar o real. O problema é que, para evitar inflação, o BC tem que esterilizar a operação, emitindo títulos para recolher os reais usados na compra de dólares. Isso aumentaria o estoque da dívida pública, o que por sua vez provocaria alta da taxa de juros. "Na prática, o efeito real desejado não seria atingido porque o BC vai diminuir o ritmo da atividade, reduzindo importações. Se não esterilizar, a operação provocará inflação. Mesmo que consiga manter o câmbio nominal, o Banco Central não conseguirá apreciar a taxa de câmbio real", explica a fonte.

Os diretores do Banco Central têm evitado fazer comentários sobre o câmbio justamente para evitar novos embates com a área política do governo, agora, reforçada pelo Ministério da Fazenda. O BC, desde o lançamento do Plano Real, há 12 anos, nunca esteve tão isolado quanto agora. Trabalha, como bem lembrou o economista Ilan Goldfajn, para um governo que lhe é hostil.