Título: Câmbio e juros, novas fronteiras de ataque
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2006, Brasil, p. A2

Após flexibilizar a política fiscal, reduzindo a meta de superávit primário de fato para 4,1% do Produto Interno Bruto (PIB) este ano, contra uma meta de 4,25% do PIB e uma média realizada de superávit nos últimos três anos de 4,6% do PIB, o Palácio do Planalto se arma para duas novas fronteiras de ataque à ortodoxia até então dominante: no câmbio, onde quer reverter a valorização da moeda; e nos juros, contrário que é ao gradualismo que considera excessivo na redução da taxa básica.

O novo comandante da política econômica, Guido Mantega, em perfeita sincronia com a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, tendo como aliados os ministros do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, e da Agricultura, Roberto Rodrigues - e todos com o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - insistem com o Banco Central para que este intensifique a compra de reservas cambiais como política de sustentação de uma melhor taxa de câmbio para os exportadores.

Eles, assim como o presidente Lula, estão muito aflitos com as pressões dos últimos dias vindas da Volkswagem, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), do setor agrícola e, ontem, da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Guido acha que os prejuízos de uma valorização cambial não são mais pontuais, estão se espraiando por vários segmentos da economia. Mesmo que uma intervenção mais pesada do BC no mercado de câmbio represente pesados custos fiscais gerados pela necessidade de esterilização dos reais jogados na economia, com a colocação de títulos públicos remunerados pela Selic, acham que o BC tem que fazer alguma coisa.

Nessa toada, podem antecipar medidas de liberalização cambial que estão sendo discutidas no Congresso, como o fim da cobertura cambial e da proibição de compensações, fora do país, entre créditos e débitos dos exportadores. Querem, ao mesmo tempo, e apesar de terem vencido a batalha da flexibilização da meta de superávit primário das contas públicas, maior celeridade na trajetória de queda da taxa Selic, embora o ministro da Fazenda já saiba que isso, embora importantíssimo para a economia, pouco afetará a taxa de câmbio.

Órfão de Antônio Palocci, que como ministro da Fazenda era uma rede de proteção para sua política, o Banco Central já sente os golpes das divergências. Se o aumento das compras de dólares nos últimos dias é fruto da ofensiva palaciana, não está claro, mas a conversa da direção do BC com os demais ministros que a ele se opõe tem tido o resultado de um entendimento entre surdos e mudos.

Na orfandade, BC teme pelas pressões por mudanças O palácio quer que a economia cresça de forma mais robusta. O ideal seria pelo menos algo semelhante ao padrão do Chile, de 6% ao ano. Mas não quer nem ouvir falar sobre o que o Chile fez nas duas últimas décadas para chegar a esse estágio, a começar da revolução na previdência social. Só no ano passado, o Chile teve superávit nominal das contas públicas de 7% do Produto Interno Bruto (PIB). A dívida líquida do setor público está praticamente zerada e o total das despesas públicas é de cerca de 17% do PIB.

A comparação com a performance do Brasil mostra a distância que o país ainda está de uma boa situação fiscal. Aqui, a dívida líquida gira em torno dos 51% do PIB e as despesas totais do setor público representam cerca de 32% do PIB, encargo semelhante aos dos países europeus, que crescem a uma média de 1,5% a 2% ao ano. Ou seja, está ruim tanto do lado do estoque quanto no dos fluxos, o que tem seu preço e ele é pago com menores taxas de crescimento econômico.

O crescimento este ano, na ótica dos economistas do governo, deverá bater a casa dos 4% ao final do ano, mas com uma forte aceleração na margem, nos últimos meses do exercício, deixando um bom "carry over" para 2007. Mas isso, salientam interlocutores do governo que têm ouvido as preocupações do BC, não é suficiente para aplacar os ânimos da Presidência da República, que pressiona o BC por mais câmbio e menos juros, num movimento simultâneo ao aumento do gasto público.

Ao substituir Palocci por Mantega, Lula transferiu para a Presidência da República a interlocução do Banco Central com o governo, retirando do Ministério da Fazenda qualquer relação de subordinação da autoridade monetária. Isso deu um certo alívio aos mercados e analistas econômicos, que entenderam a medida como uma garantia do presidente da República de que não haveria qualquer restrição à autonomia do Banco Central para adotar as medidas necessárias ao cumprimento da meta de inflação.

O que ocorre na realidade, após dois meses da mudança, porém, é que vem do próprio Palácio do Planalto, a quem o BC agora responde diretamente, a pressão para mudar a partitura que orienta a ação dos instrumentos monetário e cambial do BC, num pré-ensaio do que se pretende que seja o possível segundo mandato de Lula: menos ortodoxia, mais desenvolvimento.

É obvio, contudo, que a diretoria do BC não padece de uma doença sádica, que deixa a taxa de câmbio derreter e mantém os juros reais ainda na casa dos 10% por mero prazer. Com todos os equívocos que possa ter cometido, o BC trouxe a taxa de inflação para a meta e isso, embora não seja tudo, também não é pouco.

Todos querem mais crescimento de forma duradoura. A divergência está em como alcançá-lo. Com certeza, este não será obtido com o governo fechando os olhos para o sério e duro problema fiscal a ser enfrentado, sobretudo no que se refere à expansão demasiada da despesa corrente, nem atendendo a reivindicações específicas em detrimento do interesse coletivo.

É até compreensível que o debate econômico se ressinta de consistência e racionalidade em anos de sucessão presidencial, onde o jogo político coloca limitações à medidas impopulares e discussões reformistas. Mas a pior solução seria, agora, desarrumar o que já está arrumado ou desistir de ir adiante no que precisa ser consertado.