Título: Chávez e definição de terra improdutiva assustam produtor brasileiro na Bolívia
Autor: Janes Rocha
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2006, Brasil, p. A2

Os produtores de soja brasileiros não estão nem um pouco tranqüilos com o plano de reforma agrária anunciado terça-feira pelo governo boliviano. Embora reconheçam o mérito da abertura para o diálogo trazida com o anúncio das medidas, eles temem pelos critérios que o governo vai adotar para considerar um latifúndio improdutivo e pela influência da Venezuela de Hugo Chávez na formatação das novas regras. Além disso, temem uma associação do Movimento Sem-Terra (MST) brasileiro com sem-terras bolivianos para invadir suas propriedades e querem que o presidente Lula intervenha para apoiá-los na negociação com a gestão Evo Morales.

A posição foi expressa pelo agricultor Roberto Zacarias, "sojeiro" na região de Santa Cruz de La Sierra, a mais rica da Bolívia e onde se concentram 99% da produção de soja e oleaginosas do país. "O plano do governo traça estratégias sem consultar o setor privado. E o problema é que existe uma clara posição contra o modelo produtivo atual", disse Zacarias em entrevista ao Valor na sede urbana de sua fazenda, uma casa ampla situada no elegante bairro Las Palmas, em Santa Cruz de la Sierra.

Zacarias é presidente da comissão técnica da Associação Nacional dos Produtores de Oleaginosas (Anapo), que representa 14 mil produtores e cooperativas de soja, trigo e girassol na região. Mineiro de Lagoa Santa, formado em Zootecnia pela Universidade Federal de Viçosa (MG), o fazendeiro está há 12 anos em Santa Cruz, onde nasceram seus dois filhos. Os brasileiros são responsáveis por 40% da produção de soja boliviana - que por sua vez representa 14% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional - de US$ 9,3 bilhões em 2005 -, e 27% do PIB da região de Santa Cruz, a mais rica da Bolívia.

"Os brasileiros têm US$ 300 milhões investidos na Bolívia. Essa atividade foi construída 15 anos atrás, a ferro e fogo, por imigrantes que vieram de várias partes do Brasil trazendo 'know how ? , variedades de sementes produzidas pela Embrapa e pela Fundação Mato Grosso, defensivos e maquinários. Trouxemos para a Bolívia o sistema de plantio direto que é conservacionista e hoje mais de 50% da área cultivada com soja é por esse sistema", afirma Zacarias.

Ele conta que a Anapo, em parceria com a Câmara Agropecuária del Oriente (CAO), entidade maior e que reúne também os pecuaristas, estão se articulando, inclusive politicamente, apoiando candidatos da oposição ao MAS (partido de Evo Morales) para ter uma representação melhor na Assembléia Constituinte que, para ele, será o grande campo de batalha pelos interesses do setor.

Os decretos de reforma agrária anunciados terça-feira não especificam o que o governo entenderá como latifúndio improdutivo e, segundo Zacarias, "há rumores" de que seriam 2,5 mil hectares o que, segundo ele, em algumas regiões como a do Chaco não dá para criar nem "uma só vaca" porque o terreno é árido "como a Austrália".

"Está todo mundo preocupado, há rumores que o governo quer controlar a comercialização e temos informações de que há técnicos venezuelanos trabalhando com o governo na regulamentação. Não é uma política traçada pelas necessidades da Bolívia."

O fazendeiro prega, porém, o diálogo entre as partes. "Vamos tentar negociar, há espaço para todos na Bolívia", afirmou. Falando em nome de todos os produtores associados à Anapo, ele diz que espera que o presidente Lula intervenha a favor dos brasileiros porque, embora o embaixador do Brasil, Antonino Mena-Gonçalves, tenha feito todos os esforços possíveis, "tecnicamente ele não pode fazer mais", afirma.

Mesmo diante de várias declarações de autoridades do governo Morales, garantindo que a reforma agrária não atingirá terras produtivas, os produtores têm mantido reuniões diárias sobre o tema. O governo tem sido muito mais flexível com os produtores rurais do que foi com as petroleiras e anteontem já retrocedeu. Ao anunciar as linhas gerais do plano de reforma agrária, o vice-presidente Alvaro Garcia Linera disse que seis decretos entrariam em vigor imediatamente para resolver questões mais "urgentes" e o plano como um todo seria divulgado no fim do mês. Na quarta-feira decidiu não assinar nenhum decreto antes de discutir com todos os envolvidos.

O ministro do Desenvolvimento Rural, Hugo Salvatierra, chamou todos os envolvidos com a questão para um grande encontro no dia 24 em Santa Cruz para discutir o assunto. Hoje, o vice-presidente Linera chega à cidade para se encontrar com as lideranças do agronegócio. O ministro de Obras Públicas, Salvador Ric, vem mantendo desde semana passada encontros com os empresários.

Três nomes circulam pela imprensa como mais prováveis atingidos pela "reversão ao Estado de terras improdutivas" - Branko Marinkovic, Hector Justiniano e Julio Leigue, que são bolivianos. Em entrevista a um canal de TV de La Paz, Leigue disse se sentir um "perseguido político" e afirmou que há muitos anos vendeu quase todos os dez mil hectares que tinha. "Não creio que ter mil hectares dedicados à pecuária seja considerado latifúndio improdutivo".