Título: Uma proposta de política fiscal
Autor: Alexandre Manoel A. da Silva e Manoel C. de Castro
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2006, Opinião, p. A10

Um dos temas recorrentes da política fiscal brasileira tem sido a elevação na rigidez orçamentária e a conseqüente deterioração no volume de investimento público, o qual diminuiu em prol da obtenção dos maiores níveis de superávits primários. Até mesmo economistas preocupados com a sustentabilidade da dívida pública brasileira sugerem que a política fiscal de maiores superávits primários obtidos por meio da redução do investimento público representa um obstáculo ao crescimento econômico, implicando, pois, a necessidade de equacionar a manutenção da vigente austeridade fiscal com o aumento dos investimentos públicos.

Nesse sentido, em consonância com Blanchard & Giavazzi (2004, "Improving the SGP through a proper accounting of public investment", Discussion Paper Series, nº 4.220, Centre for Economic Policy Research), propomos uma alteração na atual política fiscal, de modo a manter a austeridade fiscal e elevar o nível de investimento público, ou seja, propomos permutar a meta fiscal de superávit primário por uma de poupança em conta corrente do governo. O conceito de poupança em conta corrente do governo consiste na retirada dos investimentos públicos do cálculo do superávit primário. Em virtude de não penalizar a elevação do estoque de capital, um dos determinantes do crescimento econômico, o conceito de poupança em conta corrente do governo, mostra-se economicamente mais adequado do que o superávit primário.

Contudo, uma questão que circunda essa permuta é se a utilização da poupança em conta corrente do governo não significa muito mais um relaxamento fiscal do que uma mudança de política justificada pela teoria econômica. Em texto para discussão a ser publicado pelo Ipea, avaliamos se a permuta da meta de superávit primário pela de poupança em conta corrente do governo implica alteração na trajetória da razão dívida pública/PIB.

A fim de estabelecer relações para a construção de cenários, estimamos modelos de vetores auto-regressivos, nos quais os resultados confirmam a intuição de que o aumento de investimento público pode contribuir para o aumento do crescimento econômico. Diante dessa relação, estudamos possíveis trajetórias para a razão dívida pública/PIB tanto em ambiente de meta fiscal de superávit primário quanto em ambiente de meta fiscal de poupança em conta corrente do governo.

As simulações dos cenários embasam-se em meta de superávit primário de 4,25% do PIB e em meta de poupança em conta corrente do governo de 7,65% do PIB, que corresponde a uma meta similar de um superávit primário de 4,25% do PIB, pois, no período 1999 a 2005, a média de investimento público é de 3,4% do PIB.

Alteração da meta não comprometeria redução da relação dívida/PIB e, ao mesmo tempo, não seria obstáculo ao crescimento Em relação à taxa real de juros, realizamos projeções de acordo com três estados da natureza: 12%, 11% e 10%. No primeiro estado da natureza, com taxa real de juros de 12%, no ambiente de meta fiscal de superávit primário e no horizonte de dez anos, a razão dívida pública/PIB cresce cerca de 6 pontos percentuais do PIB; no ambiente de meta fiscal de poupança em conta corrente do governo, a razão dívida pública/PIB cresce em torno de 7 p.p. do PIB. No segundo estado da natureza, com taxa real de juros de 11%, no ambiente de meta fiscal de superávit primário nos próximos dez anos, a razão dívida pública/PIB é estável; no ambiente de poupança em conta corrente do governo é praticamente estável, pois há um acréscimo de somente cerca de 0,3 p.p. do PIB. No terceiro estado da natureza, com taxa real de juros em 10%, no decorrer dos dez anos seguintes, no ambiente de meta fiscal de superávit primário, a razão dívida pública/PIB cai aproximadamente 5 p.p. do PIB e, em um ambiente de meta fiscal de poupança em conta corrente do governo, a razão dívida pública/PIB decai cerca de 4 p.p. do PIB.

Portanto, os resultados mostram que a adoção da meta de poupança em conta corrente do governo não resulta em qualquer alteração substancial na trajetória da razão dívida pública/PIB. Nos cenários em que a razão dívida pública/PIB é insustentável, ela é tanto com meta de superávit primário quanto com meta de poupança em conta corrente do governo. É válido ressaltar que, apesar de a trajetória da razão dívida pública/PIB ser praticamente igual em ambientes de superávit primário e de poupança em conta corrente do governo, nesse último, em virtude de não se penalizar o investimento público, nossas estimativas sugerem que a taxa de crescimento econômico eleva-se, aumentando o bem-estar geral.

Uma segunda questão referente à adoção da meta de poupança em conta corrente do governo refere-se à sua operacionalização, pois existe um forte incentivo para que os gestores públicos contabilizem despesas correntes como investimentos públicos. Não obstante, entendemos que, no governo federal, essa janela de oportunidades pode ser exaurida com relativa facilidade. Em primeiro lugar, na Secretaria do Tesouro Nacional (MF/STN), há uma Coordenação-Geral de Análise Econômico-Fiscal de Projetos de Investimento Público que, entre outras atribuições, dedica-se a avaliar e acompanhar os investimentos realizados por meio de Parceria Público-Privada. Ora, de posse dessa atribuição, nota-se que essa coordenação é capaz de diferenciar quais se enquadram como despesas correntes e quais despesas devem ser enquadradas como investimento.

Um outro possível argumento é que o MF/STN sofra pressões "políticas", ou seja, o processo de decisão do que é investimento pode não ser transparente, de modo a basear-se em critérios exclusivamente econômicos. Duas soluções apresentam-se para essa possibilidade: 1) incluir na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) penalidades severas para o gestor que contabilizar despesa corrente como investimento; 2) incluir na LRF, em relação ao acompanhamento e fiscalização da implementação da poupança em conta corrente do governo, recomendações ao Tribunal de Contas da União, órgão externo ao Poder Executivo federal e responsável pela fiscalização do gasto federal.

Assim, no Brasil, além dos possíveis ganhos de crescimento econômico e da manutenção da vigente austeridade fiscal, não existem empecilhos práticos que possam comprometer a adoção da meta de poupança em conta corrente do governo como instrumento de política fiscal.

Alexandre Manoel Angelo da Silva e Manoel Carlos de Castro Pires são técnicos em Planejamento e Pesquisa do Ipea.