Título: Um milagre para o Haiti
Autor: Jeffrey Sachs
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2006, Opinião, p. A11

As eleições presidenciais desta primavera no Haiti infelizmente reforçaram a deteriorada reputação do país. O paradoxo é que hoje o Haiti tem uma oportunidade, talvez a maior na sua história recente, de escapar da sua longa história de extrema pobreza e agitação.

Distante apenas meia de vôo de Miami, o país luta com níveis de pobreza semelhantes aos das regiões mais pobres da África Subsaariana. Enquanto muitas partes do mundo são extremamente pobres em função do seu isolamento, o Haiti, no entanto, é extremamente pobre, apesar da sua proximidade com o maior mercado do mundo. Agora o Haiti pode transformar a sua geografia em vantagem competitiva, mas só se os Estados Unidos ajudarem.

O Haiti relembra um lamento antigamente ouvido sobre outro vizinho dos EUA, o México: "Tão distante de Deus e tão próximo dos EUA". Assim como o México, a proximidade do Haiti com os EUA teve boas e más conseqüências na sua história. Estar próximo dos Estados Unidos certamente deveria ser uma vantagem para as exportações e a atração de investimentos.

A proximidade, porém, também significou ingerência americana. O Haiti foi o segundo país, depois dos EUA, a conquistar a sua independência da Europa, na esteira de uma rebelião de escravos em 1804. Mas os EUA consideraram o Haiti como uma ameaça em vez de um colega em liberdade, recusando-se a estender reconhecimento diplomático até depois da deflagração da Guerra Civil, que finalmente colocou um fim à escravidão nos EUA.

Mesmo depois do reconhecimento por Abraham Lincoln em 1862, as relações continuaram azedas. O Haiti foi explorado e ocasionalmente ocupado por tropas dos EUA, em vez de ser considerado como um legítimo parceiro dos EUA no comércio e na diplomacia.

Enquanto isso, as condições ecológicas e demográficas do Haiti colocaram enormes desafios de desenvolvimento que jamais foram superados. A ilha é abalada regularmente por furacões devastadores. Ela tem sido maciçamente desflorestada e o seu solo foi exaurido de nutrientes. As doenças tropicais continuam matando até os nossos dias.

Ocorreu um golpe econômico devastador em meados do século XIX, quando a Europa aprendeu a produzir açúcar a partir de uma lavoura de zona temperada, as beterrabas, em vez da cana-de-açúcar tropical. Os preços do açúcar no mundo desabaram e o Haiti caiu num estado de desordem ainda mais profundo. A pobreza extrema fomentou o analfabetismo e a governança miserável, que por sua vez intensificaram a fome, a doença e a instabilidade.

A história recente do Haiti é marcada por um trágico e extraordinário declínio a partir da década de 1980, exacerbado por uma diplomacia dos EUA por vezes bem-intencionada, porém freqüentemente executada de forma desastrosa. Numa tentativa de empurrar o Haiti na direção da democracia, os EUA impuseram sanções econômicas que mutilaram o frágil e recém-emergente setor de exportações daquele país, especialmente de vestuário e outras formas de produção com uso intensivo de mão-de-obra. O desemprego disparou. A violência urbana proliferou.

Será estratégico que Preval ofereça uma estrutura sólida que combine investimentos públicos com aproximação à comunidade de negócios Os EUA então passaram a manter um relacionamento destrutivo de 15 anos com Jean-Bertrand Aristide, que é esmagadoramente popular entre os pobres do Haiti, porém alvo de desconfiança por parte da maioria do empresariado do país e de muitos políticos importantes dos EUA. Quando Aristide assumiu o poder em 2001, a administração Bush eliminou a maior parte da ajuda internacional, arremessando a economia numa queda livre. O governo de Aristide foi deposto em circunstâncias muito contestadas em 2004.

O presidente recém-eleito, René Preval, é um agrônomo muito talentoso e experiente e, portanto, possui a formação perfeita para reanimar a economia rural degradada do Haiti. Com o mercado dos EUA ao seu lado, o Haiti poderá realizar uma extraordinária recuperação nas exportações de horticultura, frutas e outros produtos agrícolas, bem como no turismo e em bens manufaturados primários.

Será estratégico que o novo governo ofereça uma estrutura sólida que combine investimentos públicos estratégicos - estradas, eletricidade, nutrientes de solo, cepas melhoradas de sementes, saúde pública, água segura - com gestos de aproximação com o propósito de aumentar a confiança junto à comunidade de negócios e para estabelecer relações proveitosas com os EUA e outros países doadores. Desta vez, os EUA têm forte interesse em cooperar plenamente para promover o progresso econômico. Outra rodada de fracasso só provocaria caos, incluindo uma enorme quantidade de novos refugiados dirigindo-se aos EUA.

O descompasso entre o desempenho do Haiti e seu potencial é tão grande atualmente que podem ser obtidos vultosos ganhos nos níveis de renda, produção agrícola, saúde, educação e mais. A produtividade das lavouras está abaixo de uma tonelada de cereal por hectare de terra - muito menos da metade do que seria possível obter facilmente se os agricultores recebessem ajuda para conseguir acesso a fertilizantes, sementes melhoradas e infra-estrutura básica.

As condições sanitárias são igualmente terríveis, mas poderão ser melhoradas dramaticamente apenas com imunização, erradicação de pragas, água segura, antibióticos e redes de cama contra a malária. Os agentes comunitários de saúde poderão ser treinados em questão de meses para estender assistência sanitária a todas as áreas rurais, que poderão ser melhor mobilizadas para resistir aos efeitos debilitantes de furacões futuros.

Na frente econômica, o Haiti poderá tornar-se um exportador rentável de lavouras tropicais como o amendoim, manga, flores, feijão-verde e bambu - uma fonte de progresso entre os vizinhos Haiti na bacia do Caribe. A própria cidade natal de Preval já usou com sucesso um nível modesto de apoio de doadores externos para criar novas cooperativas rurais destinadas a comercializar lavouras melhoradas. E o Haiti, com suas lindas praias e sua arte e música admiráveis, poderá mais uma vez transformar-se em uma importante destinação turística.

Realmente, o Haiti pode se tornar uma inspiração para muitas outras democracias frágeis e empobrecidas. Os EUA, França, Canadá e outros importantes países doadores não podem perder esta oportunidade histórica para oferecer ajuda vital ao novo governo democraticamente eleito de Preval.

Jeffrey Sachs é livre-docente em Economia e Diretor do Instituto Terra na Universidade Columbia. © Project Syndicate 2006. www.project-syndicate.org