Título: Crime e castigo
Autor: Fontoura, Jorge
Fonte: Correio Braziliense, 21/08/2010, Opinião, p. 23

Em momento singular da cena mundial, com toda a parafernália da comunicação instantânea e da informação on-line, o mundo se associa perplexo e incrédulo diante do inenarrável que se anuncia: os iranianos irão enterrar uma mulher até o peito e apedrejá-la até a morte, como nas profundezas mais primitivas da barbárie humana. Sakineh Mohammadi Ashtiani, de 43 anos, mãe de dois filhos, acusada de adultério e já condenada pela ortodoxia das leis do Islã, aguarda a execução no corredor da morte do presídio de Tabriz.

Embora admitida em mais de cinquenta países, como Nigéria, Somália e Afeganistão, a lapidação tem sido prática remota e em desuso, diante das leituras evoluídas dos textos corânicos: Quando se arrependem e se corrigem, deixai-os em paz! No entanto, parece próprio às religiões terem noites de trevas e de desvario, ao contrário do bem essencial que perseguem. O islamismo, ao contrário de difundida percepção ocidental, também é credo de compaixão e de caridade, de resignação e de tolerância, a depender da forma como professado. No caso iraniano, prevalece a brutalidade da interpretação primeva, para usar a violência como instrumento de poder, pois é necessário assustar para governar. E o direito penal dos aiatolás é particularmente desmedido quando trata das lapidações: As pedras não devem ser muito grandes para matar imediatamente e nem tão pequenas para não serem consideradas pedras.

Conforme a Anistia Internacional, são de fato os governos os maiores violadores de direitos humanos. Em mais de uma centena de países aplica-se a tortura por agentes estatais, como prática recorrente e tolerada.

Por seu lado, mas com a mesma gravidade, países de prestígio no concerto das nações, como Estados Unidos, China, Índia e Rússia, se recusam a firmar o Estatuto de Roma, a fim de permitir que o Tribunal Internacional Penal funcione de forma plena, para julgar tiranos como Omar-alBashir, o notório genocida de Darfur e presidente do Sudão.

A par de iniciativas da sociedade civil, em particular na rede mundial freesakineh.org, que tem reunido milhares de assinaturas com pedido de clemência, pouco ou nada se viu por parte de governos, sempre emaranhados nos melindres da política ou nos limites paralisantes da diplomacia. O governo brasileiro, a destoar do silêncio constrangido das demais nações, foi proativo e ofereceu de maneira unilateral abrigo humanitário à iraniana. Trata-se, no plano jurídico, de medida conforme a prática internacional, compatível com a tradição brasileira, com respaldo no ambicioso preâmbulo da Constituição Federal: direitos humanos devem prevalecer nas relações internacionais. Em nenhuma hipótese a iniciativa pode ser tomada como ato inamistoso, de condenação ou de interferência em negócios estrangeiros, como bem assinalou o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, que foi excelente aluno de direito internacional.

A atuação humanitária brasileira não atenta contra a soberania alheia e muito menos implica juízo de valor acerca de assuntos internos de outro país. Assente em doutrina e em recorrentes resoluções das Nações Unidas, a concessão de asilo é direito inalienável dos Estados, da mesma forma como o exercício da lei de seus territórios, ainda que repleta de barbárie, com penas infamantes e cruéis. Vale dizer, assim como o Brasil tem o direito de propor soluções humanitárias e construtivas no plano internacional, também tem o governo iraniano o direito de ignorar a iniciativa, para permitir o uso das tais pedras não tão grandes, mas não tão pequenas, como diz sua legislação lapidar, infelizmente, no caso, literalmente.

Não bastasse a Constituição brasileira fundamentar o ato de querer salvar uma vida, ainda que distante e fugidia, das garras de um regime intolerante e fanático, temos ao nosso lado os ensinamentos do próprio islamismo. Kofi Annan é quem resgatou, em memorável discurso, as famosas palavras do profeta, citando literalmente o Corão: Salvar uma vida é salvar toda a humanidade. O Brasil faz sua parte, ao custo de aprender que, também em política externa, a mão que afaga não pode ser a mesma que apedreja.