Título: Linera vê "nova esquerda" no poder na América Latina
Autor: Cláudia Schüffner e Francisco Góes
Fonte: Valor Econômico, 16/05/2006, Brasil, p. A3

A esquerda latinoamericana que ganhou o governo brasileiro há quatro anos, chegou ao poder na Bolívia e Venezuela e tem chances de ganhar também no Peru e no México tem uma característica em comum: a origem nos movimentos sociais. Esse perfil distancia os esquerdistas do Século XXI daqueles que militavam nos anos 50, 60 e 70, que tinham no horizonte uma visão desenvolvimentista e não avançaram muito além da colaboração entre os países e de um encontro entre partidos.

A análise é do vice-presidente da Bolívia Alvaro García Linera. Sociólogo e matemático, Linera sempre foi um dos mais requisitados analistas políticos da Bolívia. Agora, envolvido com decisões de governo, ele não participa mais da discussão nos jornais e na academia, mas fez uma análise importante do cenário latinoamericano em entrevista à imprensa brasileira no sábado.

Ele faz uma ressalva sobre a influência dos movimentos sociais organizados do Brasil. O PT, partido do presidente Lula, que tem origem nestes movimentos, não conseguiu manter a ligação original. "Não vemos no Brasil uma vitalidade dos movimentos sociais acompanhando o governo, na Bolívia sim. O MAS (partido de Morales) surge dos movimentos sociais e os acompanha, não espera do governo. No Brasil, os movimentos esperaram do governo. São experiências cada qual respeitáveis, mas muito distintas", comparou o vice-presidente.

Linera acha que, em termos de processo social e liderança, o que se chama hoje de "chavismo", "lulismo" e agora "morelismo" são também movimentos muito distintos. "No caso de Chávez você tem a experiência do militar patriota que inicia um conjunto de reformas em seu país de cima para baixo, organiza a sociedade até abaixo". Já na Bolívia, "a ocupação veio de baixo, da sociedade para o estado".

"Aqui você tem uma sociedade em que todos estão organizados em sindicatos, federações, confederações. Há aqui uma sociedade civil muito viva, ativa, autônoma e zelosa dessa autonomia. Muito dificilmente você vai aqui organizar a sociedade. Então há uma grande diferença com Chávez", afirmou.

A nacionalização do petróleo e do gás, exemplifica, não foi uma demanda que surgiu do MAS, surgiu dos movimentos sociais, desde outubro de 2003. "O que o MAS fez foi viabilizar o que surge da vontade dos movimentos sociais, transformando essa vontade em campanha, em programa de governo e agora em decreto".

À pergunta que se faz hoje, da Terra do Fogo ao Caribe, se Evo Morales é influenciado por Hugo Chávez, se vai fazer um governo igual, Linera responde tranqüilamente: "Essa é uma leitura equivocada". Em termos de liderança, Morales é um sindicalista, um líder indígena camponês, "com práticas, iniciativas, lógicas discursivas e maneiras de vincular-se com habilidade muito distintas (de Chávez)".

Esse perfil é que deve ser levado em conta para avaliar o "processo autônomo" de cada um dos presidentes. "São três processos paradigmáticos do renascimento da esquerda plural na América Latina e cada qual tem sua própria particularidade, sua autonomia, seu próprio orgulho e capacidade de ensinar aos outros muito distintas", acrescenta Linera.