Título: A conta das aventuras e a torneira do consumidor
Autor: Luiz Pedro Biazoto e Paulo Ludmer
Fonte: Valor Econômico, 15/05/2006, Opinião, p. A12

A fragmentação da unidade continental latino-americana se ampliou com a crise boliviana - ou bolivariana - que seqüestra bens, encarece e destrói a confiança entre os países parceiros da região. Ela arrasa contratos, afasta investimentos e promove soluções emergenciais no Brasil, refém e vulnerável à volatilidade nos suprimentos de gás natural da Bolívia (depois de perder as entregas argentinas derrocadas após 2001). Além disso, Peru, Equador e Venezuela elevam a temperatura do devir.

A saúde da competitividade do bloco sul-americano sai combalida pela liqüidação circunstancial da otimização energética e da integração que estava em curso. A crise atual dissolve a força do conjunto e expõe a região ao aumento das forças dos blocos do hemisfério norte, em particular da Ásia. Por sua vez, Chile e Uruguai já buscam caminhos próprios singulares.

Momentaneamente, os suprimentos de gás natural aos consumidores brasileiros estão intactos e seus preços estáveis. Mas não há ilusões. Contribuintes e consumidores receberão em algum tempo e de alguma forma a fatura de mais esses equívocos gerenciais - estratégicos e logísticos - da matriz energética do Brasil. Os reflexos se farão por vasos comunicantes em todos os demais insumos energéticos essenciais para a cadeia produtiva do país, em suas trocas internas e com o exterior.

Porém, o futuro imediato não aguarda e há um clamor do consumidor industrial a ser urgentemente acolhido no Brasil: ele deve participar dos planos de contingenciamento e de soluções urdidos pelo Estado e por alguns agentes privilegiados, tais como os distribuidores, transportadores e produtores. Leia-se também Petrobras. Sem a participação, a voz e o voto de todos os demais agentes neste processo, qualquer plano está fadado ao erro e à ineficácia. Veja-se que constrangimentos na oferta podem ser políticos ou até por acidentes físicos

Observe-se que, em energia elétrica, o gás vinha exercendo o papel de salvaguarda do equilíbrio tracejado para o mercado, notadamente em 2008 e 2009, períodos em que falta reforçar a oferta, pois não há tempo para uma expansão da geração hidráulica. O cenário é mais delicado depois de 2010/11. Portanto, o consumidor, especialmente o autogerador de energia, deve ser incentivado a reforçar seu papel, esmaecido pela falta de atratividade no negócio.

Longe do delírio de gabinetes alheios, de sonhos acadêmicos e de políticos paroquiais e umbilicais, é o usuário quem sabe o que pode aplicar em seu empreendimento, a que custo, em que tempo e com qual dinheiro!

Vide o reconhecimento da existência e da necessária regulamentação do mercado secundário de gás natural no Brasil, que é fundamental para seu mercado consumidor industrial. E a Lei Federal do Gás - com três projetos distintos tramitando no Congresso Nacional - deve esse respeito ao elo essencial da economia nacional, que é sua cadeia produtiva de bens reais. A urgência de um marco regulatório agora só faz crescer.

Hoje há gás interruptível no país vendido a preço firme. A razão dessa sobra é que as termelétricas compram 100% do combustível de que necessitariam para operar à plena carga, por ser um lastro obrigatório para suas necessidades operacionais, no momento em que são postas a funcionar.

Projeto de lei do gás apresentado pelo governo surpreendeu pela pouca atenção dada ao mercado secundário

Como essas térmicas são dispensadas nos períodos de chuvas fartas - vide março de 2006 -, seu gás previamente contratado permanece disponível. E, de fato, ele é posto no mercado, com preço cheio, sem que a sociedade se beneficie do desconto do seu excesso. Somente o lado da oferta preserva seus ganhos com a situação.

Na verdade, se o Brasil precisar ligar instantaneamente essas térmicas - por exemplo, devido a um acidente de reparo demorado nas linhas de transmissão de Itaipu -, rapidamente a indústria, que paga preço de gás firme, seria exposta ao racionamento.

É nesse contexto que o Ministério das Minas e Energia (MME) apresentou no Congresso seu projeto para a Lei do Gás. Surpreendeu pela pouca atenção ao mercado secundário, notadamente eliminando a até então configurada Câmara de Comercialização para o gás interruptível. Retrocedeu também no tocante à regulação - agora abandonada - do mercado secundário. A instalação da Câmara abrigaria a oferta de gás natural interruptível na forma de leilões públicos, sob a anuência das concessionárias distribuidoras.

Sem a regulamentação do mercado secundário de gás, perdem-se oportunidades para aumentar a competitividade e a transparência do mercado. A oferta pública a um custo menor pressionaria para baixo também os preços aos consumidores domésticos, comerciais e de gás veicular.

Os custos diretos do gás, além dos de transporte e de uso do sistema de distribuição, já foram pagos integralmente pelo contratante firme (termelétricas). Então, ao entrar no mercado secundário, como interruptível, o mesmo gás passaria a ser negociado pela segunda vez.

Nem produtores nem concessionárias seriam prejudicados, portanto, pela redução de valores do interruptível. E, aos consumidores industriais, os custos menores trariam maior produção e redução nos índices de inflação. O reflexo seria observado na economia nacional, cujo aquecimento é um dos principais fatores de geração de emprego e renda, sendo as indústrias responsáveis por mais de 60% do consumo nacional.

Eis agora ameaças e oportunidades: delas o Brasil sairá maduro e fortalecido ao aproximar os agentes em suas agendas comuns. No outro extremo, o consumidor, inviável, fecha a torneira da riqueza, da produção da economia real.

Luiz Pedro Biazoto é coordenador de gás natural da ABRACE (Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres) e sócio-diretor da Power Systems Engenharia.

Paulo Ludmer é diretor executivo da ABRACE e secretário geral da INTERAME - Associação Interamericana de Grandes Consumidores de Energia.