Título: Crise frustra expectativas sociais no Egito
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Fonte: Valor Econômico, 19/10/2011, Especial, p. A14

Diante daquilo, era afirmar o óbvio. Quando Hazem el-Beblawi, o novo ministro das Finanças do Egito, alertou no fim do mês passado que processos contra empresas estrangeiras estavam abalando a confiança do mercado no país, ele estava expressando o sentimento de muitos investidores. Afirmações adicionais de que a Primavera Árabe não está sendo uma benção para as economias da região também não pareceram surpreendentes.

Mas não no Cairo. Na capital egípcia, seus comentários provocaram furor, com insultos aparecendo na internet e em telefonemas a programas de entrevistas na TV. Como o ministro ousava criticar o que a opinião pública considera uma justiça necessária contra a corrupção da era Hosni Mubarak, ou colocar em dúvida as conquistas da revolução que este ano depôs o presidente de longa data?

Essam Sharaf, o primeiro-ministro, postou recentemente em sua página no Facebook, numa tentativa de acalmar os protestos, que Beblawi não teve intenção de questionar a revolução, da qual, insistiu ele, "estamos todos orgulhosos".

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A controvérsia é um testemunho do mau humor que toma conta do Egito pós-revolucionário, um país em estado de fermentação desde a deposição de Mubarak em fevereiro, a mudança política mais importante da Primavera Árabe que varre o Oriente Médio e o norte da África. Liberdades recém-conquistadas levaram a uma explosão de demandas de retaliação contra ex-membros do governo e empresários, prejudicando ainda mais uma economia já abalada - e vêm gerando expectativas sociais que estão colidindo com a atual realidade econômica.

Enquanto a maior nação do mundo árabe luta para restabelecer a normalidade, muitos dentro do Egito e fora do país temem que a incapacidade de se gerar dividendos econômicos ameace uma transição política que já é considerada frágil.

Promessas de dezenas de bilhões de dólares em apoio financeiro têm sido feitas por governos ocidentais e árabes, conscientes da necessidade de se ter um Egito estável, mas até agora pouco desses recursos foi desembolsado e grande parte está na forma de ajuda de longo prazo ao desenvolvimento. No curto prazo, porém, superar o impacto econômico da mudança após três décadas sob o governo de Mubarak, num país onde 40% da população vive abaixo ou perto de linha de pobreza, está se mostrando uma tarefa assustadora.

Ao contrário de muitos de seus vizinhos ricos em petróleo, o Egito possui uma economia diversificada com um grande mercado doméstico. Localizado no cruzamento de Ásia, África e Europa, ele sempre foi apontado como tendo potencial para se tornar uma potência regional. Mas, além da falta de visão do governo Mubarak, o país vem tendo como outro obstáculo a má administração econômica, a burocracia excessiva e o ensino ruim.

A incerteza representada pela revolução levou a economia a contrair 4,2% nos primeiros três meses do ano e a taxa de desemprego subiu de 9% para 12%. Os investimentos foram paralisados e o número de turistas despencou. Os investimentos estrangeiros diretos, que atingiram um pico anual de US$ 13 bilhões antes da crise financeira global de 2008, evaporaram. Enquanto isso, o Egito perdeu um terço de suas reservas cambiais. O Fundo Monetário Internacional (FMI) espera uma recuperação lenta e pressões contínuas sobre o balanço de pagamentos.

A administração Sharaf, que assumiu em março, não conseguiu acabar com as greves que atingiram os setores público e privado, além dos portos, enquanto sindicalistas encorajados tentam conseguir aumentos de salários e se livrar de administradores impopulares. Os comentários de Beblawi foram uma tentativa de acalmar os investidores estrangeiros em meio a uma avalanche de processos movidos por trabalhadores demitidos anos atrás e decisões da justiça contestando contratos da era Mubarak.

"A revolução se ramificou em mini revoluções em todos os nossos investimentos no Egito", reclama um grande investidor árabe cujo hotel cinco estrelas foi ocupado em agosto por funcionários que exigiam aumento de salários e a substituição do gerente.

Para piorar a situação dos investidores, os generais que agora governam o Egito possuem pouca experiência econômica, ou mesmo política. Segundo consta, alguns dos militares de alta patente do Conselho Supremo das Forças Armadas se opuseram à liberalização da economia durante os anos Mubarak. A maior preocupação imediata, porém, é que o comando que eles vêm exercendo tem sido vacilante e confuso, tentando ao mesmo tempo satisfazer as demandas populares e revitalizar o crescimento econômico, sem conseguir nenhum dos dois.

Uma das primeiras medidas dos generais foi aumentar os salários do setor público em 15%, um aumento muito necessário num país onde anos de inflação elevada nos preços dos alimentos corroeu o poder de compra. Menos elogiada, entretanto, foi a decisão de conceder empregos permanentes a 450 mil pessoas que trabalhavam sob contrato, adicionando um fardo de longo prazo aos futuros orçamentos.

Algumas medidas foram rapidamente revertidas. Num esforço para atender as demandas de mais gastos sociais, o governo delineou um orçamento maior para o ano fiscal iniciado em junho. Para ajudar a tapar um déficit previsto de 10,6% - em comparação a 8,6% no ano passado -, ele negociou um linha de crédito "standby" de US$ 3 bilhões junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Três semanas depois, porém, o Egito desistiu do empréstimo porque o conselho militar não quis acumular seus sucessores de dívidas. O governo também desistiu dos planos de um empréstimo de US$ 2,2 bilhões do Banco Mundial. O orçamento voltou a ser reduzido e o déficit projetado recuou ao nível de 2010.

Mesmo assim, com os pesados custos dos empréstimos domésticos ficando mais aparentes, funcionários do governo agora afirmam que poderão voltar a recorrer às instituições internacionais. "A indecisão tem um impacto", diz Nada Farid, economista do banco de investimentos Beltone Financial. "O simples fato de você reduzir o número do déficit poucos dias após anunciá-lo abala a confiança."

Ahmad Galal, diretor-gerente do Economic Research Forum do Cairo (ERF), compara o dilema dos governantes militares a alguém com insônia revirando na cama em busca de uma posição confortável para dormir. "Durante 30 anos houve uma acomodação estável: ninguém pensava na melhor posição para dormir", diz ele sobre o governo de Mubarak. "Agora, estamos começando tudo de novo e estamos tentando encontrar a posição certa."

Entretanto, a estabilidade que Mubarak oferecia escondia um mal-estar crescente e minou o potencial real de uma economia de US$ 225 bilhões com a má administração e a corrupção.

Nos últimos cinco anos da era Mubarak, com grande parte do crescimento vindo do turismo e dos setores têxtil e da construção, o crescimento anual do PIB foi em média de 6%. Mas isso ainda era pouco em relação ao que o Egito precisa para absorver as 650.000 pessoas que ingressam na força de trabalho todos os anos. Além disso, promover as politicas liberais que deram sustentação a esse crescimento teve muito a ver com o avanço das perspectivas políticas de Gamal Mubarak, o filho do ex-presidente e na época seu aparente herdeiro, que era o batalhador de uma equipe econômica de mentalidade reformista dentro do governo. As políticas também beneficiaram os ricos, muitos deles amigos do jovem Mubarak, e pouco fizeram para diminuir a desigualdade social.

Na esteira da revolução, os egípcios tentaram se vingar dos amigos de Mubarak, desencadeando uma série de acusações criminais contra ministros e empresários como Ahmed Ezz, o magnata do aço que era o principal estrategista do ex-partido governista e que arrumou um jeito de ser vitorioso nas eleições fraudulentas do ano passado. No mês passado, Ezz foi sentenciado a dez anos de prisão por corrupção e multado em US$ 110 milhões. Ele está apelando contra a condenação.

"Os empresários temem que poderão ser os próximos, mesmo não tendo cometido nenhuma irregularidade", afirma um banqueiros experiente do Cairo. O setor da construção tem sido duramente atingido depois que ativistas iniciaram contestações judiciais à posse de terrenos por algumas grandes incorporadoras, sob a alegação de que eles foram obtidos de ministros a preços baixos em negócios camaradas, sempre sem licitações. Presidentes de empresas afirmam que os ministros estão agora sofrendo da "síndrome das mãos trêmulas", relutando em tomar decisões por temerem punições futuras.

Privatizações feitas no passado também estão sendo investigadas. Uma corte de justiça do Cairo decidiu no mês passado que três companhias do setor industrial vendidas nos últimos 20 anos deverão retornar para as mãos do Estado por causa de irregularidades durante o processo de privatização.

As incertezas econômicas criadas pelas contestações legais estão sendo exacerbadas pela deterioração da segurança e uma mudança na agenda política. A polícia ainda não se recuperou da humilhação sofrida durante a revolução, quando não conseguiu conter os protestos e foi acusada de assassinar manifestantes. A falta posterior de um policiamento eficiente levou a um aumento da criminalidade, com gangues armadas roubando condutores de veículos e atacando fábricas e armazéns.

O cronograma inicial da transição política foi de seis meses, após os quais as autoridades militares deveriam transferir o poder para um governo civil. No entanto, as eleições parlamentares deverão ocorrer apenas no fim de novembro e os generais agora sugerem que um presidente civil não será eleito antes do fim do ano que vem.

"Não temos uma visão clara sobre como o novo Egito será governado, por quem e qual discurso vai moldar a nova agenda política", disseram analistas do HSBC em um relatório divulgado recentemente. As eleições também darão uma grande ênfase ao "reforço da justiça social", observaram eles, o que poderá ficar dentro das expectativas populares, mas poderá desapontar aqueles que esperam uma aceleração das reformas econômicas.

Masood Ahmed, encarregado do FMI para o Oriente Médio e Ásia Central, diz que os formuladores de políticas do Cairo enfrentam agora o desafio adicional do impacto que o agravamento das perspectivas econômicas globais terá sobre a recuperação do turismo e dos fluxos de investimentos. Uma prioridade imediata é garantir financiamentos adequados para proteger a economia ao longo do próximo ano. Mas ele diz que também é importante começar a cuidar da agenda de médio prazo, como a reforma do sistema de subsídios que é um grande ralo no orçamento, e implementar políticas para um crescimento maior e mais inclusivo, que envolvam facilidades de financiamento e uma regulamentação mais favorável às pequenas empresas que hoje lutam para conseguir crédito bancário.

Enquanto os novos governantes do Egito tentam balancear pressões conflitantes, analistas afirmam que tanto os generais como a população precisam ter em mente o quadro mais amplo - o de que o país está no meio de uma mudança histórica e que essa mudança terá um preço. "As pessoas estão impacientes - estão dizendo a elas que os crescimento econômico está alto, que a vida está maravilhosa, mas elas não estão vendo isso; agora elas estão dizendo "é a nossa vez" e eu entendo isso", diz Galal do ERF.

"Mas durante uma grande mudança da sociedade seria um erro comparar o que você tem com o que você tinha antes", acrescenta ele. Na transição do Egito - que foi iniciada de uma maneira bem mais pacífica que em qualquer outra parte da região e foi de muitas formas menos tumultuada que revoltas parecidas ocorridas em outras partes do mundo -, "o custo econômico está sendo muito menor do que o que foi pago por outros países".