Título: Corte dá razão ao Uruguai na disputa com a Argentina
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 14/07/2006, Internacional, p. A9

A Argentina sofreu ontem uma importante derrota em sua tentativa de impedir a construção de duas fábricas de polpa de celulose no Uruguai, junto à fronteira entre os dois países. O tribunal internacional de Haia rejeitou, por 14 votos a 1, o pedido argentino de paralisação das obras, o que abre caminho para que os projetos sejam concluídos. O caso provocou a maior crise entre os dois sócios do Mercosul desde os anos 50.

A medida cautelar foi pedida pela Argentina sob o argumento de que a instalação das fábricas viola o estatuto do rio Uruguai, um tratado firmado em 1975 e que determina que os dois países têm de realizar consultas mútuas antes da realização de qualquer projeto que possa afetar o curso de água compartilhado. O único voto favorável à posição argentina foi dado por um juiz indicado pelo país.

A corte entendeu que por enquanto não há elementos para determinar se os projetos causarão danos irreversíveis à economia e ao ambiente. A análise do caso continuará, mas como uma decisão final pode levar cerca de três anos, o veredicto só será conhecido quando as fábricas já estiverem em funcionamento.

Depois do pronunciamento do tribunal, o governo argentino tentou amenizar a derrota, emitindo nota em que qualifica como positivo que o tribunal tenha citado em sua decisão a possibilidade de os projetos serem modificados ou até desmantelados caso a decisão final da Corte assim determine.

As autoridades argentinas também notaram que poderão pedir outras medidas cautelares caso surjam indícios de que as fábricas causarão danos irreparáveis ao ambiente e às atividades econômicas, como turismo e agricultura, desenvolvidas no lado argentino da fronteira.

Os projetos das empresas Botnia (finlandesa) e Ence (espanhola) envolvem investimento de US$ 1,7 bilhão, o maior da história do Uruguai. A fábrica da Botnia está com as obras adiantadas, e a previsão é que comece a operar em meados de 2007. Já a construção da fábrica espanhola se encontra no estágio inicial, e atualmente as obras estão paralisadas. A interrupção, até que o tribunal de Haia chegasse a uma decisão, foi um gesto de boa vontade com o governo argentino.

Uma porta-voz da Ence afirmou ao Valor que a companhia ainda não definiu quando retomará os trabalhos e qualificou de "especulações" notícias publicadas no mês passado pela imprensa uruguaia, afirmando que a empresa estaria disposta a transferir a fábrica para outro local.

Do lado uruguaio, o governo recebeu a notícia com um tom conciliador. "Deram-nos razão, mas ela deve ser administrada com correção e equilíbrio. Não consideremos isto como um ato de triunfalismo, mas como o início de um entendimento", disse o chanceler uruguaio, Reinaldo Gargano.

Com a mensagem, o Uruguai tenta reabrir o diálogo com a Argentina e evitar ações hostis por parte da população de Gualeguaychu, a cidade argentina às margens do rio Uruguai, do lado oposto à uruguaia Fray Bentos, onde estão sendo construídas as fábricas.

Moradores da cidade argentina bloquearam durante vários meses estradas que ligam os dois países, como forma de protestar contra a instalação das fábricas, sem que as autoridades argentinas agissem para restabelecer o tráfego. O bloqueio causou grande prejuízo ao Uruguai. Os moradores da cidade se reuniriam ontem em assembléia para decidir que ações adotarão a partir de agora.

A possibilidade mais temida, tanto pelo governo argentino quanto pelo uruguaio, é que os moradores decidam voltar a bloquear as estradas. Consultado sobre essa possibilidade, Gargano disse que o Uruguai "exigirá que se cumpra o direito internacional", citando o Tratado de Assunção, que definiu as bases do Mercosul e que garante a livre circulação de pessoas e mercadorias.

A organização ambientalista Greenpeace divulgou comunicado considerando "previsível" a decisão do tribunal da ONU e criticou a Argentina. Segundo a ONG, "a decisão de recorrer a Haia foi um grave erro porque debilitou os canais de diálogo e gerou expectativas equivocadas que se prolongaram durante meses". Na avaliação do Greenpeace, o resultado tende a fortalecer setores uruguaios "mais radicais" favoráveis às empresas, dificultando a elaboração pelos governos da região de uma estratégia conjunta para amenizar o impacto ambiental destas e de outras fábricas de celulose que venham a se instalar na região.