Título: Argentina insiste nas cotas, apesar do desvio de comércio
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/07/2006, Opinião, p. A10

O governo argentino reafirmou ontem, durante reunião do Comitê de Monitoramento de Comércio, que não tem interesse em extinguir o mecanismo de cotas de vários produtos brasileiros, estabelecido por meio de acordos "voluntários" entre setores empresariais dos dois países. O pedido feito pelo Brasil leva em conta o fato básico de que concorrentes do país estão se beneficiando das cotas e ampliando sua participação no mercado argentino. O secretário da Indústria argentina, Miguel Peirano, acenou com a possibilidade de uma ampliação do volume de calçados vendidos pelo Brasil e com novas discussões em relação ao destino dos demais produtos que sofrem restrições quantitativas.

A Argentina argumenta, com mais ênfase desde o início do governo de Néstor Kirchner, que uma invasão de produtos brasileiros estava causando danos às empresas nacionais. Sob ameaça de retaliações mais efetivas pela Argentina, os empresários dos dois países, após negociações, concordaram em estabelecer limites para calçados, eletrodomésticos (geladeiras, máquinas de lavar e fogões) e outros produtos. Com o sinal emitido por seu governo, diversos setores empresariais argentinos também clamaram por proteção, o que levou a novas investidas dos argentinos para a ampliação de barreiras ao comércio no Mercosul - uma aberração em uma união aduaneira. O Brasil cedeu ao apelo dos argentinos, em um dos maiores recuos institucionais do Mercosul. O Mecanismo de Adaptação Competitiva foi criado, de forma a proporcionar um ritual e um cronograma para o exame e a decisão das proteções comerciais reivindicadas.

Seria natural que, após expirado o prazo para as cotas estabelecidas, elas cedessem o lugar para a aplicação do MAC, que não deveria existir, mas que, existindo, tem a virtude de conter a arbitrariedade e o subjetivismo das medidas unilaterais do governo argentino. O governo argentino, por seu lado, não aceita amarras que possam comprometer suas ações e prefere jogar um jogo que pode beneficiar até certo ponto a indústria argentina, porém, de outro, prejudica as empresas brasileiras.

No caso dos calçados, as exportações brasileiras para a Argentina permaneceram estacionadas em 13 milhões de pares. De um ano para outro, porém, a Argentina praticamente dobrou as importações de calçados chineses, que já ultrapassam 2 milhões de pares. Os resultados da proteção advinda da "guerra das geladeiras" não foi alentadora para as companhias brasileiras. Entre 2003 e 2005, a produção da indústria argentina cresceu 124%, enquanto que a compra de fornecedores não-brasileiros mais que triplicou - subiu 272%. As vendas brasileiras ao vizinho cresceram apenas 13%. Nos primeiros cinco meses de 2004, a Argentina importava 155 mil unidades do Brasil. Dois anos depois, comprou 119 mil, enquanto as importações de outros países aumentou de 7 mil para 19 mil unidades.

A China tem sido a principal beneficiada pelo crescimento industrial argentino em várias frentes. O Brasil fornecia 77% dos utensílios domésticos importados pelo vizinho no primeiro quadrimestre de 2002. Quatro anos depois, esse percentual encolheu para 19%, enquanto que a fatia da China no período saltou de 19% para 79%, como informou o Valor (6 de julho). A aceitação da China como economia de livre mercado abriu ambos os mercados para mercadorias de preços mais baixos. As exportações chinesas à Argentina foram multiplicadas por sete desde 2003 e chegam a US$ 3,2 bilhões (ante US$ 11,9 bilhões das do Brasil). Aparentemente, o espírito nacionalista que inspirou barreira a produtos de um parceiro comercial do Mercosul não tem sido tão aguerrido diante de outros países.

Há vários acordos de restrição ainda em andamento, mas parece lógico que, uma vez aceito o MAC, como queria o governo argentino, eles deixem de existir após o fim de seu prazo. As alegações de danos à indústria local precisará ser circunstanciada e provada, deixando de bastar pressões, sobre o governo Kirchner, de setores que perderam competitividade. A tolerância diante das dificuldades argentinas precisa seguir o compasso da economia. A Argentina já recuperou o terreno perdido pela dramática crise econômica e tem crescido mais de 8% nos últimos dois anos. Em decorrência, suas importações estão aumentando. Não há qualquer sentido em restringir a presença brasileira em proveito de outros concorrentes.