Título: Ainda o ajuste fiscal
Autor: Ana Claudia Alem
Fonte: Valor Econômico, 14/07/2006, Opinião, p. A10

O assunto ajuste fiscal continuará dominando as atenções. O objetivo desse artigo, contudo, é o de ir na contramão desse debate e criticar a visão dominante, de que o governo não faz o "seu dever de casa" e promove uma "gastança generalizada".

O déficit fiscal é calculado "abaixo da linha", pela variação do endividamento. Da variação da dívida (resultado nominal), retira-se o equivalente aos juros e obtém-se o resultado primário, objeto das metas fiscais. Causa surpresa que ultimamente pouco se fale do peso que os juros sobre a dívida continua representando no déficit total. Desde o início das metas primárias, o Brasil vem superando-as brilhantemente a cada ano. A performance é mais impressionante tendo em vista que as metas aumentaram ao longo do tempo: de 3,1% do PIB em 1999, hoje são de 4,25% do PIB, tendo atingido 4,5% do PIB em 2004. Em 2005, o superávit foi de 4,84% do PIB - o maior desde a adoção do sistema. Entretanto, todo o esforço fiscal feito não foi suficiente para cobrir a conta dos juros que atingiu 8,11% do PIB (R$ 157 bilhões). Por isso, continuamos apresentando um déficit nominal.

No primeiro trimestre de 2006, apesar do superávit primário de 4,39% do PIB, o déficit nominal foi de 4,86%, explicado pela exorbitância de 9,25% do PIB em gastos com juros. Mesmo assim, tem havido uma queda da relação dívida pública/PIB, que saiu de 57% em 2003 para os atuais 52%, resultante do forte esforço fiscal e da retomada do crescimento. Ou seja, a relação poderia estar bem mais baixa, não fossem as despesas de juros.

O Brasil tem as maiores taxas de juros reais do planeta. Em 2005, segundo a GRC Visão, o Brasil liderou o ranking das maiores taxas reais de juros (12,6% ao ano), seguido de longe pela Turquia (7,5%) e México (5,6%). Ainda que a taxa nominal feche 2006 em 14%, a taxa real será da ordem de 9% a 10%, cerca de cinco vezes a dos EUA.

O nível elevado dos juros prejudica as contas públicas. Diretamente, encarecendo o serviço da dívida. Indiretamente, pela redução do potencial de crescimento, com impactos negativos sobre a arrecadação e despesas.

Passemos à análise "acima da linha" que explicita as rubricas de receitas e despesas e que tem concentrado mais as atenções ultimamente. Quando se analisa a evolução das despesas correntes da União em proporção ao PIB de 2000 a 2005, observa-se que os gastos correntes que mais cresceram foram os sociais: previdência, benefícios assistenciais e combate à pobreza. As despesas de custeio e de investimento foram reduzidas.

A economia brasileira vem se sujeitando por muitos anos à combinação de uma política contracionista e uma política fiscal rígida Além de fatores estruturais associados ao envelhecimento da população, o aumento dos gastos com benefícios previdenciários e assistenciais decorreram dos aumentos reais do salário mínimo e da elevação do gasto público com assistência social, ambos com vistas a reduzir a desigualdade de renda e os índices de pobreza do Brasil. O aumento dos gastos no combate à pobreza seguiu a mesma linha.

Vale destacar que vários estudos têm mostrado o impacto positivo destas medidas na redução da miséria e desigualdade. Um estudo da FGV de dezembro de 2005, mostrou que entre 2002 e 2004 a participação na renda total dos 50% com os menores níveis de renda aumentou de 13,2% para 14,1%. Dada a péssima distribuição de renda no Brasil, a redução das desigualdades sociais precisa ser uma prioridade não apenas deste governo, mas de todos os outros que se seguirem.

Além de maior justiça social, a redução das desigualdades também gera demanda na economia. É reconhecida a importância que benefícios previdenciários e assistenciais no valor de um salário mínimo têm tido no nível de atividades de pequenos municípios do país. Ademais, a confirmação de taxas de crescimento do PIB mais elevadas nos próximos anos atenuará o problema, a partir dos impactos positivos sobre a arrecadação da previdência, tanto de forma direta, com o aumento do nível de renda, quanto indiretamente pelo aumento da formalização do mercado de trabalho.

Tanto os gastos com custeio quanto de investimentos apresentaram queda no período 03/05 em relação a 00/02. No debate fiscal, as "despesas de custeio" são entendidas como o valor necessário para a "manutenção da máquina administrativa". Por isto, para os críticos haveria um aumento de gastos de manutenção da máquina - dispensáveis - em detrimento dos investimentos. Isto é um equívoco, pois, na sua maior parte, as despesas de custeio incluem gastos com um grande número de programas finalísticos que representam benefícios diretos à população, tais como Bolsa Alimentação, Bolsa Escola, gastos com saúde, educação, saneamento etc. Todos esses programas, embora sejam classificados, do ponto de vista da contabilidade pública, como despesas correntes, representam indiscutíveis benefícios à sociedade.

Se não há espaço para novos aumentos da carga tributária para financiar o aumento das despesas correntes, também é pouco defensável que haja cortes de gastos sociais ou de investimentos públicos. O que fazer, então?

A arrecadação tributária funciona como um estabilizador automático e, sendo assim, a aceleração do crescimento será a melhor forma de aprofundar o ajuste fiscal já em andamento. Como os principais indicadores fiscais são calculados em relação ao PIB, basta que o produto venha a crescer mais do que eles ao longo do tempo para que haja melhoras adicionais nas contas públicas.

Além disso, surge a questão: é razoável que um país como o Brasil que tem crescido abaixo de seu potencial e com uma elevada dívida social ainda por resgatar registre superávits primários tão elevados? A economia brasileira vem sendo sujeita por muitos anos à combinação de uma política fiscal rígida com uma política monetária contracionista. Em ano de aniversário de 70 anos da "Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda", Keynes deve estar se "revirando" em seu túmulo! E muitos ainda não entendem porque o PIB brasileiro cresceu apenas 2,3% em 2005.

Ana Claudia Alem é doutora em economia pelo IE/ UFRJ, economista do BNDES e co-autora do livro "Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil", Editora Campus.