Título: Governo esvazia Saúde em favor do Bolsa Família
Autor: Raymundo Costa
Fonte: Valor Econômico, 02/08/2006, especial, p. A12

O ministério que termina o governo Luiz Inácio Lula da Silva sob a mira do escândalo das "sanguessugas" foi o mais visivelmente enfraquecido pela perda de poder político. Depois da gestão que embasou a candidatura tucana à Presidência, em 2002, a Saúde tornou-se a síntese do esvaziamento das pastas sociais dos anos petistas em favor de sua principal vitrine , o Bolsa Família. O ministério apresenta números positivos na expansão do programa Saúde na Família e no Programa Nacional de Imunizações, mas registra uma diminuição na velocidade de queda da mortalidade infantil em relação ao governo anterior, de acordo com os últimos dados disponíveis no IBGE (2004).

Segundo maior Orçamento da República, destinatário de 46% dos " recursos disponíveis de todo o governo " , no cálculo do ministro Agenor Álvares, a Saúde foi das mãos do PT ao PMDB, dentro de um processo de reconstrução da base de sustentação do governo no Congresso. Mas boa parcela do dinheiro continuou sendo desviada para programas como o Bolsa Família ou o Fundo de Erradicação e Combate à Pobreza, até que, em 2005, o Tribunal de Contas da União considerou o procedimento irregular. Outra parcela vai para programas com a " marca " própria do PT, como o Farmácia Popular, questionado por não ser universal.

A perda de força política é patente na ausência de regulamentação da Emenda Constitucional 29, que vincula os recursos para a Saúde. A emenda estabelece que o orçamento da pasta nunca será inferior ao do exercício anterior, mais a variação do PIB. A regulamentação, além de definir quais são as ações e serviços públicos de saúde, estabelece que 10% das receitas correntes da União serão destinadas ao setor. Em 1995, esse percentual chegou a 9,5%. Está em torno dos 7%, atualmente.

O ministro Agenor Álvares assegura que já há entendimento no governo para a regulamentação. Mas o próprio presidente eventualmente defende que sejam incluídas no Orçamento ações que o próprio ministro costuma classificar de "contrabandos dos serviços de saúde". Já no primeiro contato que teve com integrantes da Frente Parlamentar de Saúde, em 2003, Lula justificou a realocação de R$ 3,6 bilhões para o combate à pobreza, por considerar "a falta de um prato de comida" um grande problema de saúde. À época, disse que alguns dos congressistas eram "lobistas", constrangendo o então líder do PT, senador Tião Viana (AC), que fazia parte do grupo.

Em 2004 e 2005, o orçamento da Saúde ainda contemplou ações do fundo contra a pobreza. Mas o Congresso retirou do Orçamento de 2006 - uma das polêmicas que retardou a votação do projeto - R$ 2,1 bilhões para "contrabandos" como o programa Bolsa Família, carro-chefe da campanha de Lula à reeleição.

PT loteou a pasta e desmontou ou substituiu algumas das principais marcas tucanas, como a política dos genéricos, os mutirões de cirurgia e o premiado programa contra a aids. E, apesar de ter sido comandado pelo partido do presidente durante a maior parte do mandato, os recursos diminuíram, em valores reais, programas como o Farmácia Popular não decolaram e a pasta terminou estigmatizada como um reduto de "vampiros" e "sanguessugas".

Sob o comando do PT, o ministério foi o que mais criou cargos: 40,86% auxiliares a mais. Cerca de 64,5% dos cargos de direção do ministério e das instituições vinculadas foram entregues a médicos e profissionais ligados ao PT e partidos aliados, como PCdoB e PPS (que então apoiava o governo). O ex-ministro Humberto Costa, hoje candidato ao governo de Pernambuco, alegava que as nomeações obedeciam a compromissos políticos e competência técnica, argumentação que ruiu com a crise do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio, em 2003. No ano seguinte, uma nova crise, quando foi revelado que havia interferência política na fila de transplantes de medula óssea.

O Ministério da Saúde tem justificativa para cada mudança nos programas que marcaram a gestão do PSDB, especialmente a de José Serra, hoje candidato ao governo de São Paulo, adversário de Lula em 2002. Caso da "guerra" para a quebra de patentes e da substituição de importações de medicamentos contra a aids, que na opinião do ex-ministro Serra tem enfrentado "tropeços graves". Para Agenor Álvares, a dicussão "somente é válida quando há garantia sanitária do produto", "quando o preço representa um benefício para o país e há garantias de que o medicamento estará disponível para o usuário do Sistema Único de Saúde".

Nessa balança, afirma o ministro, "até o momento as negociações que estamos empreendendo têm nos dado respostas mais satisfatórias para uma política de saúde pública". Como resultado, o ministério passou a pagar 51% menos pelo Tenovir, que faz parte do coquetel para tratamento de portadores de HIV. O acordo representa uma economia de US$ 31,4 milhões ao ano. Já a negociação com o laboratório Abbot permitiu uma economia de US$ 339,5 milhões com a redução do preço do antirretroviral Kaletra, de US$ 1,17 para US$ 0,63 a cápsula.

A campanha dos genéricos, outra marca dos tucanos, se justificou como parte de uma estratégica inicial de lançamento, segundo o governo atual. "Acreditamos que a publicidade dos genéricos deve ficar a cargo dos laboratórios. Seria uma incoerência o governo fazer propaganda para uma fatia do setor farmacêutico". O fato é que, apesar de o governo ter suspendido as campanhas, as vendas de genéricos cresceram 22,7% em janeiro de 2006 em relação ao mesmo mês de 2005. A participação no mercado saltou de 10% para 11,7% - mas poderia ter chegado a 30%, segundo técnicos do setor.

Desde 1999, os mutirões realizaram cerca de três milhões de cirurgias - catarata, retinopatia diabética, varizes e próstata. Especialmente no que se refere à catarata, a oposição considerou humilhante o fato de o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, levar 79 pernambucanos para serem operados em Caracas. "Esta ação foi realizada sem o conhecimento protocolar e o apoio da gestão federal", disse Agenor. O programa Saúde na Família, outra jóia da coroa tucana, no entanto, foi ampliado com mais 7.700 equipes. São mais de 25 mil em ação.

Para o ministério, os mutirões só se justificam quando há alteração da rotina. No caso da catarata, havia uma extensa demanda a ser atendida. Ele alega que o método antigo contemplava apenas quatro procedimentos cirúrgicos. Atualmente são mais de 80 tipos de cirurgia. Mas "diferentemente dos mutirões, os gestores deverão informar a demanda, a oferta de serviços e estabelecer metas, levando em conta a população total de abrangência, o número de procedimentos e a população atendida", diz o ministro. Para os críticos, uma forma de burocratizar e politizar o atendimento.

De qualquer forma, o ministério pode afirmar que os mutirões não foram de todo abandonados e são responsáveis por alguns sucessos inegáveis do governo Lula, como o Programa Nacional de Imunizações. As campanhas de vacinação contra a poliomielite tiveram cobertura igual ou superiores a 95%. A vacinação contra a influenza, destinado à população maior de 60 anos, tem cobertura superior à recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) - 70% - e chegou 85,7% em 2006. Foi de 72,5% em 2000.

No que se refere à mortalidade infantil, dados do IBGE demonstram que, apesar de o índice continuar caindo, houve uma diminuição na velocidade de queda. A média anual de redução do índice, nos oito anos do governo Fernando Henrique, foi de 4,2%. Nos dois primeiros anos do governo Lula, caiu para 2,18%. De acordo com a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, esse índice está hoje em 26,6 por mil nascidos vivos. Era de 37,9 em 1995.

O ministério é reticente quando se refere aos casos de corrupção, como a compra superfaturada de hemoderivados - denominada "escândalo dos vampiros" - e de ambulâncias, que desencadearam a "Operação Sanguessuga" da Polícia Federal. Limita-se a informar que dispõe de "importantes ferramentas de controle interno", além de cooperar com a PF na apuração dos casos. "Os números de denúncias apuradas e medidas punitivas cresceram consideravelmente nos últimos anos", diz Agenor, sem citar dados.