Título: E da luz se fez a morte...
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 05/09/2010, Brasil, p. 10

Cerca de 1.500 mulheres morremtodos os anos no parto ouemproblemas decorrentes dele, número idêntico ao da década passada. Nova série do Correio conta as histórias que as estatísticas ignoram: como é a vida dos filhos após a tragédia Arquivo Pessoal

Jorge nasceu há dez dias, tem uma irmã de 9 anos e já está em casa. Já Bruno tem dois meses e meio de vida, umirmãoadolescente eumquarto decorado, organizado cuidadosamente pela mãe. Amylee, por sua vez, nasceu miudinha, chegou a sofrer uma parada respiratória e precisou ficar naUnidade de Terapia Intensiva (UTI) por 10 dias seguidos.

A menina, filha única, se recuperou e, cinco meses após o nascimento, tem boa saúde, apesar da necessidade de acompanhamento médico.Os três bebês voltaram para casa pelas mãos da avó, do avô ou do pai. As mães morreram após o parto.

O que silenciosamente se passa nas maternidades brasileirasem especial nas unidades que prestam atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS)converteu-se numa tragédia contínua, que não arrefece ao longo dos anos. As gestantes correm riscos reais de morte, num país que não conseguiu reduzir os índices de mortalidade materna na última década. Oficialmente, cerca de 1,5 mil mulheres morrem todos os anos no Brasil por complicações na gestação, no parto ou em até 42 dias após o nascimento do filho. É a quantidade de mortes registrada peloMinistério da Saúde em 2009, mesmo número de registros em 1996, 13 anos atrás.

A redução da mortalidade materna é um dos objetivos de desenvolvimento do milênio (ODMs) acertados entre o Brasil e a Organização dasNaçõesUnidas (ONU), a exemplo do que fizeram outros 190 países.

A meta estabelecida é diminuir em três quartos a chamada razão da mortalidade materna, que é a proporção entre óbitos e 100 mil nascidos vivos, até 2015.Ogoverno calculou queem1990 essa razão era de 140 mortes de mulheres para cada 100 mil nascidos vivos. Nos próximos cinco anos, essa razão deve chegar a 35. Estamos longe: em 2007, foramregistradas 75 mortes.

O mais provável é que o Brasil não consiga cumprir o ODM da mortalidade materna.

É o objetivo mais difícil de ser atingido entre os oito estabelecidos, e provavelmente a meta fique pelo caminho, como reconhecem setores do governo e da própria ONU.

A gravidade do problema apareceemtodos os dados oficiais da mortalidade materna no Brasil e, principalmente, na soma de tragédias particulares, enfrentadas por pais, avós e pequenos órfãos de mulheres que estiverambem próximas de exercer a maternidade.

AOrganização Pan-Americana de Saúde( Opas) consideracomotolerávelumataxa de mortalidade materna de 20 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos.Oíndice no Brasil é quase quatro vezes maior. A redução que o governo brasileiro sustenta ter provocado nos casos de mortalidade materna é controversa.

Até porque há dados contraditórios dentro do próprioMinistério da Saúde.

Fator de ajuste O último relatório sobre o acompanhamento do cumprimento dos ODMs no país foi divulgadoemmarço deste ano e traz a informação sobre a redução pela metade da mortalidade materna no Brasil. Eram 140 óbitos a cada 100 mil nascidos vivosem1990 e 75 em 2007.Os números foramcalculados peloMinistériodaSaúde.Opróprio ministério, porém,temoutros dados. Segundoos dados da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa), a taxa de mortalidade era de 51,6 em 1996no relatório oficial sobre os ODMs, são 112,5 óbitos , cresceu ao longo dos anos e chegou a 77,2em2006.

A contradição é explicada pela aplicação de um fator de ajuste, que busca corrigir a subnotificação. Nos dados do relatório oficial sobre o cumprimento dos ODMs, esse fator teria sido de 2, ou seja, para cada morte registrada nos hospitais, outro óbito deixava de ser notificado, o que passou a ser corrigido pelo fator de ajuste. A Ripsa usou um fator de 1,4, calculado a partir de 2000. Não havia sistema de informação no Brasil em 1990. A razão de 140 mortes naquele ano não foi cabalística, justifica o médico Adson França, doMinistério da Saúde, coordenador nacional do pacto pela redução da mortalidade materna e responsável pelo cumprimento dosODMsna área de saúde.

Os números absolutos de óbitos maternos, atualizados pelo Sistema de Informações sobreMortalidade (SIM), doMinistério da Saúde, mostram que a quantidade de mortes não diminuiu ao longo dos anos, mesmo a partir de 2004, quando as notificações passaram a ser obrigatórias e novas regras foram definidas para combater a mortalidade materna. É uma situação distinta do que ocorreu com a mortalidade infantil a taxa era de 53,7 óbitos por mil nascidos vivos em 1990 e caiu para 22,8 em 2008. A meta para 2015, de 17,9, muito provavelmente, será atingida.

Em números absolutos, as mortes de crianças com menos deumano de idade caíramde75mil em 1996 para 41,1 mil no ano passado, segundo os dados do SIM. O Brasil já cumpriu as metas de redução da extrema pobreza e da fome,comsete anos de antecedência.

Apermanênciados índices demortalidade materna ao longo dos anosao contrário do que acontece com a mortalidade infantil, a pobreza e a desnutriçãoé ainda mais grave porque entre90%e98%das mortes são evitáveis, segundo profissionais de saúde que atuam nos comitês de redução da mortalidade materna, ouvidos pelo Correio.

Areportagem levantou 11 casos de mulheres que morreram no parto ou logo depois do nascimento dos filhos e,emquase todos, familiares relatam descaso no atendimento médico, peregrinação por unidades de saúde ou diagnósticos equivocados sobre a gravidade do estado de saúde das pacientes.

Os casos de mortalidade materna são tratados com discrição peloMinistério da Saúde e sob o mais absoluto sigilo pelos comitês estaduais e municipais de redução da mortalidade.Mesmo assim, o Correio identificou, no Distrito Federal, em Curitiba (PR), em Recife (PE), em Porto Alegre (RS) e em João Pessoa (PB), mulheres que morreram pouco depois de ser mães. Essas histórias serão contadas em uma série de três reportagens.