Título: Eleição na Bolívia sinaliza rumo da revolução andina
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Fonte: Valor Econômico, 30/06/2006, Internacional, p. A10

Nos últimos três anos, a Bolívia fez o que pode para manter sua reputação de país mais instável da América do Sul. Protestos de rua derrubaram dois presidentes. Em dezembro, o líder indígena Evo Morales ganhou, com 54% dos votos, a eleição presidencial, com a promessa de "refundar" o país e torná-lo mais igualitário. Para isso, ele conta com a Assembléia Constituinte a ser formada nas eleições deste domingo. Cerca de 3,7 milhões de bolivianos estão aptos a votar.

Até agora, Morales criou uma aparência de calma neste país que quase sempre parece ingovernável. Rafael Puente, que como vice-ministro do Interior é responsável pela segurança do país, diz que geralmente consegue sair do escritório em um horário razoável - embora admita que comprou um monitor de pressão sangüínea após passar por um ou dois sustos.

A oposição, também, está arisca. Morales se aliou com Fidel Castro, de Cuba, e Hugo Chávez, da Venezuela. No 1º de Maio, o Dia do Trabalho, o presidente boliviano cumpriu sua promessa de campanha de nacionalizar os setores de gás e petróleo. A maneira como ele fez isso - mandando o Exército ocupar uma instalação da Petrobras - pareceu calculada para contrariar investidores estrangeiros e o governo brasileiro, que o considerava um aliado. Agora, Morales partiu para um amplo programa de redistribuição de terras. Agricultores de Santa Cruz, a capital empresarial boliviana, temem que isso ameace seus ativos e não envolva apenas terras tidas como improdutivas.

A votação deste domingo vai dar o próximo sinal de para onde está seguindo a revolução de Morales. Os 255 membros da Assembléia Constituinte terão um ano para reescrever a Constituição boliviana. Ainda no domingo, os eleitores bolivianos votarão num plebiscito por mais autonomia regional, defendida principalmente pela região de Santa Cruz, a mais rico do país.

A atual Constituição, revisada na década de 90, não precisa necessariamente ser reescrita. Mas muitos argumentam que essa é a melhor maneira de lidar com a discriminação da maioria indígena do mais pobre país da América Latina. Um acordo ligando a votação para a Assembléia e o referendo pela autonomia reduziu as tensões. Mas há quem tema no país que a Assembléia irá acabar se transformando em uma luta de facções, o que tornaria um impossível um acordo.

Outro temor é que Morales, que continua muito popular no país, lance mão da Assembléia para minar outras instituições e concentrar mais poder em suas mãos. Hugo Chávez se valeu de uma Assembléia similar em 1999. Mas agora o cenário parece ser outro. O governo boliviano foi forçado a retirar algumas regras eleitorais propostas, como a que eliminava a necessidade de dois terços dos assentos para aprovar o texto (que então será submetido a um referendo). Em vez disso, terá de buscar alianças.

"A Assembléia será dividida meio a meio entre governo e oposição", prevê Samuel Doria Medina, um político de centro que perdeu as eleições para Morales em dezembro do ano passado. "E isso garantirá que nós não iremos para o mesmo caminho da Venezuela", acrescentou.

Morales gostaria de usar a Assembléia para remover a proibição de reeleição de presidentes na Bolívia, mas outros membros de seu Movimento ao Socialismo (MAS) têm algumas reservas em relação a isso. Ele também deseja uma nova Constituição para o país, de modo que o Estado possa ter maior influência sobre a economia. A nova Carta poderia ainda dar mais direitos à comunidade indígena andina, embora isso possa incorrer no risco de dar mais poder a líderes às custas dos membros da comunidade.

O assunto mais sensível, no entanto, é a autonomia regional. O presidente boliviano está relutante em ceder mais poder ao que ele chama de "oligarquia" de Santa Cruz. Mas ele quer dar mais poder a movimentos sociais radicais que compõem a sua base política. E isso vai de encontro com o que gente de dentro do governo chama de "tendência espontânea ao totalitarismo".

Por trás da questão da autonomia regional está uma Bolívia dividida entre pobres - a maioria indígena - e quatro Departamentos (Províncias) de população predominantemente mestiça, localizadas nas prósperas regiões do norte e leste do país.

Embora o apoio ao MAS, de Morales, tenha crescido no leste boliviano, muitos lá ainda sentem que produzem a riqueza do país, com seu gás e sua soja, e que um governo parasita quer roubá-la.

A visão de La Paz é outra. O governo acredita que a riqueza produzida no leste foi obtida de forma incorreta e que seus empresários não são patriotas. Puentes, o ministro do Interior, refere-se a alguns líderes empresariais como "um inimigo que precisamos derrotar". Ele alega que esses inimigos estão "se armando para entrar em confronto com o governo". Mas se diz preocupado com a falta de entendimento sobre questões dessa região por parte do MAS, que poderiam prejudicar uma aproximação.

Em um primeiro momento, Morales mostrou interesse em um acordo com Santa Cruz, dizendo que apoiaria o "sim" no referendo pela autonomia. Depois ele mudou de opinião, passando a dizer que votaria "não" para a "autonomia da oligarquia". Confundiu seus simpatizantes e aumentou a raiva de muitos residentes de Santa Cruz.

É uma das características de Morales adotar posições duras quando sob pressão de seu próprio povo. E isso poderá ser fatal para seu governo. O MAS e seus aliados têm poucos planos e políticas claras, e também muito pouco administradores eficientes. O governo determinou um prazo de seis meses para as negociações dos novos contratos com as companhias de gás e petróleo. Se isso falhar, o presidente boliviano parece acreditar que a ajuda da vizinha Venezuela irá compensar a falta de investimentos estrangeiros. A menos que Morales aprenda a arte do acordo, assim como a do enfrentamento, os protestos em breve poderão votar para as ruas do país.