Título: Fábrica de chip continua polêmica
Autor: Daniel Rittner e Paulo de Tarso Lyra
Fonte: Valor Econômico, 30/06/2006, Empresas, p. B3
O principal compromisso assumido pelos japoneses na área eletroeletrônica é a formação de mão-de-obra e de pesquisadores brasileiros, segundo o acordo bilateral firmado ontem, em complementação ao decreto de implementação da TV digital no país.
Por um lado, a proposta do Japão de treinar especialistas brasileiros e conceder bolsas de estudo na indústria eletrônica tem como objetivo atacar o maior obstáculo apontado por especialistas para atrair uma fábrica de semicondutores: a falta de recursos humanos. Por outro, significa pouco, concretamente, em relação a duas metas do governo: ter uma fábrica de chips no Brasil e diminuir o gigantesco déficit comercial neste setor, que atingiu US$ 3 bilhões apenas entre janeiro e abril.
Ao fim do extenso processo de negociações com os três consórcios detentores de sistemas de TV digital, intensificado no início deste ano, o ponto decisivo a favor dos japoneses acabou sendo a melhor avaliação tecnológica do padrão ISDB, segundo um dos principais técnicos do Palácio do Planalto envolvidos nas discussões. A contrapartida mais bem avaliada foi a inclusão de técnicos brasileiros no fórum que acompanha as evoluções do sistema. Conforme lembrou a fonte, a União Européia ofereceu a mesma participação no Fórum DVB, mas o Brasil teria um assento em meio a mais de 50 países que já adotaram essa tecnologia.
"Seríamos apenas uma voz a mais, enquanto com o Japão podemos ter uma participação bem mais ativa", afirmou essa fonte. O padrão DVB já está presente em 57 países. A tecnologia ISDB só foi adotada pelo Brasil, fora do Japão.
Quem mais se irritou com o rumo das negociações foi o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan. Para ele, o governo errou várias vezes ao longo do processo. A primeira falha foi ter descartado, na virada do ano, a adoção do sistema americano ATSC. Eliminando preliminarmente um dos três concorrentes, Furlan acredita que o país diminuiu seu poder de barganha com a UE e o Japão.
Em conversas com seus auxiliares próximos, o ministro também lamentou a falta de coordenação do Mercosul e disse achar que o Brasil esteve frente à maior oportunidade que já teve de atrair uma fábrica de chips. Para ele, a escolha do sistema de TV digital deveria estar atrelada a um compromisso firme de instalação da unidade.
No acordo de cooperação, ficou definido que "o governo do Brasil envidará esforços para a criação de um ambiente empresarial favorável para estimular joint-ventures e atrair investimento direto na indústria de eletrônica, em particular na indústria de tecnologia avançada". Já o governo asiático diz que "espera a retomada do investimento japonês na indústria eletrônica do Brasil, como para televisores digitais e componentes essenciais, como LCD e plasma". Os dois lados vão estudar a viabilidade desse investimento em um grupo de trabalho bilateral.
Segundo explicou um dos técnicos ligados à formulação de política industrial, o objetivo prioritário do governo é estimular a comunidade científica a ter a capacidade de desenvolver a chamada "inteligência" dos semicondutores. Isso envolve o desenvolvimento do chip, com as alterações tecnológicas que o produto exige ao longo do tempo. "Também é a parte mais difícil", diz o técnico.
Essa é a primeira etapa do processo, seguida da constituição de "design centers" dos semicondutores. Segundo ele, o Brasil já tem centros desse tipo da Nokia, em Manaus. Mas isso envolveria baixa transferência de tecnologia e é o que a franco-italiana ST Microelectronics apresentou como proposta, vinculada à adoção do sistema DVB de TV digital.
"Se dominados esses dois processos, iniciar a produção de semicondutores torna-se a parte mais fácil", afirma a fonte do governo. Para tanto, seria necessário um investimento de US$ 300 milhões a US$ 400 milhões. "É como o processo de produção de uma indústria gráfica. Se você é capaz de desenvolver sozinho todo o material a ser impresso, imprimir não é a coisa mais cara."
Para Benjamin Sicsú, diretor da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), o Brasil tem todas as condições para ter uma fábrica de semicondutores. Segundo o executivo, o fato de o Brasil consumir cerca de 2% da produção mundial de semicondutores, conforme estimativas do setor, não significa que o país não possa contar com a produção local. Como exemplo, Sicsú chama a atenção para países como Costa Rica, Irlanda e Israel, que, embora tenham mercado internos menores que o brasileiro, possuem fábricas.
A alemã Siemens, que defendia a escolha do padrão europeu, desistiu de instalar no país uma fábrica de conversores e de plataformas de integração entre TV e celular com a opção do governo pela tecnologia japonesa. "Vamos buscar outros mercados porque aqui não há mais nada a fazer", afirmou Mario Baumgarten, diretor de tecnologia da empresa. Segundo ele, a produção seria concentrada em Manaus e os conversores seriam de baixo custo - em torno de 40 euros- para que o Brasil se tornasse um centro de exportação.
Baumgarten criticou duramente o decreto que oficializou a escolha do ISDB. "A gente lê e ainda não acredita. Foram seis meses de uma discussão brutal sobre as concessões que um e outro consórcio (europeu e japonês) fariam ao país e o texto contraria todo o espírito da negociação", disse.