Título: Em tom político, Lula elege padrão japonês
Autor: Daniel Rittner e Paulo de Tarso Lyra
Fonte: Valor Econômico, 30/06/2006, Empresas, p. B3

Com alfinetadas no governo anterior, que teria feito apenas discussões "superficiais" e colocado o assunto em um "beco sem saída", o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, ontem, o decreto que oficializa a escolha do padrão japonês ISDB-T para a TV digital brasileira. O documento prevê um limite de sete anos - de forma escalonada e começando pelas capitais -, para o início das transmissões digitais em todo o país. Em dez anos, os sinais analógicos deverão ser desligados. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, informou que as primeiras transmissões comerciais de TV digital vão ocorrer em São Paulo, dentro de seis a oito meses. Segundo ele, as emissoras terão legalmente até 18 meses para iniciá-las, após a aprovação de um projeto de instalação pelo ministério. "Mas muitos radiodifusores vão antecipar essa data."

A partir de agora, as transmissões digitais na capital paulista, que já têm sido feitas em caráter experimental das 9h às 14h, poderão ser estendidas para todo o dia. Costa afirmou que a intenção do governo é popularizar a nova tecnologia por meio de financiamentos que permitam a aquisição das chamadas "set-top boxes" (conversores de sinais analógicos para digitais) por famílias de baixa renda. Segundo o ministro, deverão ser lançados inicialmente conversores mais simples, com preço estimado entre R$ 80 e R$ 100 e prestações no valor de R$ 8 a R$ 10.

Dentro de 12 a 15 meses os aparelhos começarão a chegar às prateleiras dos supermercados, estima Eugênio Staub, presidente da Gradiente. O empresário calcula que a TV digital movimentará US$ 88 bilhões na indústria brasileira, nos próximos dez anos, excluindo o fornecimento de equipamentos para as emissoras. A cifra inclui investimentos nas fábricas e a projeção de vendas futuras de aparelhos eletrônicos - de conversores a televisores de alta definição. Para ele, já era tempo de escolher o padrão. "As decisões tomadas são corretas e maduras", disse Staub.

O padrão japonês ISDB-T servirá como base do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), que vai incorporar inovações e aperfeiçoamentos tecnológicos desenvolvidos por pesquisadores nacionais, como o "middleware" (espécie de sistema operacional) e a aplicação do MPEG-4 (sistema de compressão de vídeo). Grupos técnicos começarão a trabalhar nas próximas semanas para definir como serão feitas tais especificações. Também será criado um Fórum SBTVD, com representantes da comunidade científica, da indústria e dos radiodifusores, para acompanhar a evolução do sistema.

As emissoras elogiaram a adoção de um padrão "híbrido", com base na tecnologia japonesa, e já deixaram claro que vão priorizar a alta definição em vez da transmissão múltipla de canais. A TV digital permite o uso do mesmo espectro eletromagnético de 6 MHz (megahertz) para aumentar a qualidade da transmissão ou transmitir quatro programações simultâneas. Um técnico do governo afirmou que, na regulamentação da nova tecnologia, os radiodifusores serão obrigados a utilizar todo o espectro quando receberem a outorga do canal digital, sob pena de perder a concessão.

Radiodifusores vão dar prioridade à alta definição, em vez da transmissão múltipla de canais A intenção do governo é incentivar a multiprogramação quando a possibilidade de transmitir em alta definição não estiver sendo utilizada. Mas os radiodifusores não têm dúvidas quanto à sua preferência. "Em princípio, a nossa aposta é ter parcelas cada vez maiores da programação em alta definição", disse João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo.

Os demais empresários do setor devem seguir a mesma estratégia. "Não adianta ter quatro canais se o mercado (publicitário) continua um só", afirmou Amilcare Dallevo, presidente da Rede TV!. "A multiprogramação é uma dificuldade porque fragmenta a audiência", acrescentou João Carlos Saad, presidente do Grupo Bandeirantes de Comunicação.

De acordo com Saad, "o miolo das emissões já vem sendo digitalizado", mas os radiodifusores vão ter que investir pesado para se equipar. Para isso, vão contar com uma linha de crédito do Banco Japonês de Cooperação Internacional (JBIC, na sigla em inglês). A Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) considera que os mecanismos de financiamento serão fundamentais para cumprir o prazo de transição estabelecido pelo governo.

Em sete anos, as transmissões digitais deverão cobrir todo o país, na seguinte ordem, com cronograma exato a ser definido: estações geradoras de televisão nas capitais dos Estados e no Distrito Federal; estações geradoras nos demais municípios; retransmissoras nas capitais; e, por último, retransmissoras nos demais municípios. Os equipamentos podem variar de US$ 20 mil a US$ 5 milhões. Para as retransmissoras menores, os custos podem ser um problema, admite José Inácio Pizani, presidente da Abert. "Mas fazer qualquer previsão sobre o alcance das transmissões digitais em todo o país, num prazo de sete anos, é exercício de futurologia", comentou.

Em um discurso recheado de improvisos, o presidente Lula rebateu indiretamente as críticas de quem reclamava da falta de informações ao longo do processo de negociação. "A decisão foi tomada da forma mais transparente possível e com a participação de todos os setores da sociedade", afirmou. Na Casa Civil foram 38 reuniões nos últimos meses. Mas os deputados da Comissão de Relações Exteriores ainda precisam ratificar o acordo com o Japão e podem, em tese, reprovar o tratado.

Também respondendo às críticas, o ministro Hélio Costa disse que ele e seus colegas seguiram as prioridades determinadas por Lula na escolha do padrão digital de TV. Segundo ele, Lula queria desde o início um sistema que garantisse a continuidade das transmissões abertas e gratuitas a toda população. A tecnologia japonesa destaca-se por permitir o uso, na mesma faixa de freqüência, das funções de mobilidade (recepção dos sinais em ônibus e carros) e portabilidade (recepção em celulares), sem a necessidade de espectros eletromagnéticos adicionais.

Por isso, o sistema nipo-brasileiro, como gosta de chamá-lo Costa, "não será um projeto elitista, não será só para quem pode pagar cabo ou satélite". Guilherme Stoliar, diretor-executivo do SBT, aposta na rápida disseminação da TV digital. Ele disse que o impacto será o mesmo da passagem das transmissões em preto-e-branco para a televisão em cores. E arrisca, lançando o desafio para emissoras e telespectadores: "Ninguém vai querer sair de casa".