Título: Lições chinesas e indianas para as reformas no Brasil
Autor: Fernando Blumenschein e Ricardo Wyllie
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2006, Opinião, p. A12

As trajetórias das economias da China e da Índia, em especial nas últimas três décadas, caracterizadas por acelerado crescimento econômico, têm servido para motivar um amplo debate sobre que lições podem ser aplicadas ao caso brasileiro. O exercício se torna ainda mais importante porque, no caso do Brasil, quando considerado o mesmo período, o país apresentou o pior desempenho em termos de desenvolvimento de toda a sua história.

Durante o período 1975-2003, a taxa de crescimento médio anual da renda per capita no Brasil foi de apenas 0,8%, enquanto que na Índia ela alcançou 3,3% e, na China, 8,2%. Comparando os índices de desenvolvimento humano (IDH), a variação no caso brasileiro ficou em cerca de 50% do observado nos outros dois países. Sob idênticas condições de comportamento da economia mundial, China e Índia conseguiram avanços importantes no crescimento e no desenvolvimento humano, mas o Brasil permaneceu praticamente estagnado.

Apesar das grandes diferenças históricas e culturais, as economias da Índia e da China guardam semelhanças com a brasileira. Lá, assim como aqui, havia agendas de reformas que, em síntese, significavam mudanças de tratamento das estruturas de mercado, de abertura econômica e de redimensionamento do Estado. Tal proximidade entre as propostas pode ser explicada por dois fatores. Primeiro, através das estatísticas sobre os estágios de desenvolvimento econômico dos países, todos marcados pela pobreza e pela desigualdade. Adicionalmente, pelo fato de que as economias interessadas em participar mais ativamente do comércio e do mercado financeiro internacional têm adotado uma postura mais pragmática, baseada na disciplina fiscal, na austeridade monetária e na busca pela competitividade.

De forma mais detalhada, é possível encontrar na literatura internacional descrições, para a China e Índia, de reformas que em tese são absolutamente coincidentes com as que já estiveram em pauta aqui no Brasil. Cabe indagar por que motivo tais reformas não foram capazes de produzir os mesmos efeitos positivos na economia brasileira.

A princípio, na ausência de fatores mais concretos no âmbito da teoria econômica, as explicações para o "fracasso" das reformas no Brasil, comparadas com as transformações na China e na Índia, estariam concentradas nas diferenças de contextos históricos, culturais e políticos. Porém, são igualmente marcantes as diferenças entre China e Índia no que tange a estes mesmos contextos. Ademais, a estrutura econômica difere marcadamente entre os dois países. Enquanto a China apresenta uma maior presença do setor industrial e uma abertura ao comércio internacional, a Índia continua relativamente fechada e com participação preponderante do setor de serviços. Diferenças significativas também podem ser constatadas nos números das contas do setor público: a China tem um déficit de 1,7% do PIB contra cerca de 8% na Índia.

Não obstante, ambos os países procuraram seguir princípios de estratégia de política econômica que são comuns. Tais princípios podem ser examinados em busca de suas implicações para o caso brasileiro. O primeiro destes princípios é a implantação de reformas que movam o país na direção à desregulamentação econômica interna e maior inserção na economia mundial.

Sob idênticas condições da economia mundial, China e Índia avançaram, mas o Brasil permaneceu praticamente estagnado Quanto à desregulamentação, cabe citar o exemplo das que foram colocadas em prática na Índia, ainda na década de 80. Estas reformas precederam as mudanças tradicionais por estarem orientadas mais para o setor produtivo. Buscavam, através de simplificações na vida das empresas, uma forma de incentivar a economia de mercado e elevar a lucratividade do investimento privado, sendo, por este motivo, denominadas na literatura de "pró-business". Tais medidas não encontram paralelo no caso brasileiro, exceto talvez por alguns itens de um precário e já esquecido programa de desburocratização. Além disso, uma maior inserção relativa na economia mundial, especialmente no comércio, é um fenômeno apenas recente.

O segundo princípio, também comum a estes dois países, é que o processo de reformas mostrou-se suficientemente profundo e contínuo, tendo sua forma e conteúdo de implementação adequados aos contextos institucionais de cada país. Estas lições são importantes. Mudanças estruturais devem ter o poder de diminuir as ineficiências e falhas que permeiam o funcionamento de vários segmentos e mercados e o comprometimento do governo com as reformas deve ser grande o suficiente para alterar de forma substancial as regras que causam aquelas ineficiências. Ademais, a continuidade é condição sine qua non e, na sua ausência, podem-se reverter alguns ganhos institucionais que foram conseguidos no passado. Neste caso, são evidentes as falhas na experiência brasileira, que tem se mostrado omissa. O processo de mudança estrutural tem sido descontínuo, sendo algumas das reformas de efeito meramente cosméticos.

Terceiro, os fundamentos macroeconômicos, suportados pelas políticas monetária e fiscal, devem ser sólidos por um período de tempo suficientemente longo. Desfazer-se do passado e projetar resultados para o futuro é um processo demorado e que transcende mandatos políticos. O debate atual acerca da crença de que a estabilidade macroeconômica (fiscal e monetária) pode estar comprometendo o crescimento do Brasil é um sinal de que este terceiro princípio não está consolidado no consciente nacional.

Quarto, apesar de institucionalmente distintos, os dois países possuem instituições políticas e legais fortes e estáveis. Ou seja, os mesmos fatores que podem representar barreiras aos ajustes de curto prazo, por vezes necessários, são os que acabam garantindo a continuidade das reformas, impedindo mudanças oportunistas nas regras do jogo. No caso brasileiro, a mais recente "reforma" fiscal foi acompanhada de uma elevação da carga tributária e possibilitou um maior equilíbrio orçamentário do governo, mas manteve ineficiências para toda a economia. Outro fator, também recente, foi a elevação do risco regulatório em setores chaves ligados à infra-estrutura, ocasionado por ingerência política e instabilidade das regras das agências reguladoras.

Em síntese, a consciência sobre a necessidade das reformas e o conhecimento a respeito de quais são os principais pontos a serem por elas alcançados não são condições suficientes à correta implementação das mesmas, tampouco para que os efeitos desejados apareçam. A continuidade, profundidade e alcance das reformas adotadas na China e na Índia demonstram de forma muito clara que, no Brasil, os princípios estratégicos que garantem o sucesso das reformas não se verificaram na historiografia econômica brasileira recente.

Fernando Blumenschein é coordenador de projetos da FGV Projetos e professor do Curso de Graduação em Economia da FGV.