Título: Desastre na Argentina deve ser lição para Europa
Autor: Felício,César
Fonte: Valor Econômico, 24/11/2011, Especial, p. A16
A um mês de seu décimo aniversário, a crise argentina - que levou a uma moratória de US$ 132 bilhões - tende a se repetir, em dimensão semelhante, na Europa, segundo ex-ministros da Economia que assistiram de perto ao maior desastre financeiro recente da América Latina. Na Argentina, o colapso ocorreu em 2001, depois de sucessivos pacotes de cortes de gastos públicos em um contexto recessivo.
O objetivo era conter o endividamento crescente e manter a moeda valorizada, dentro do marco legal que obrigava o peso a ser convertido por um dólar. A cada iniciativa do governo, aumentava a desconfiança dos credores. Entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002, houve sucessivamente corrida bancária, congelamento dos depósitos, moratória, desvalorização e duas renúncias presidenciais. O Produto Interno Bruto retrocedeu 10,6%, o desemprego chegou a 21% e a população abaixo da linha da pobreza aumentou para 54%.
"A questão argentina não deixou nenhuma consequência. Os programas que estão sendo propostos na Europa envolvem cortar salários, reformar aposentadorias e diminuir investimentos em um quadro de contração econômica e níveis muito altos de endividamento. É a mesma estratégia do governo De la Rúa", opinou o ex-ministro Roberto Lavagna (2002-2005), que durante os governos Duhalde e Néstor Kirchner negociou com os credores um acordo para retomar o pagamento da dívida, com uma redução de 65%.
"Não existe política expansionista possível com nível de endividamento elevado, e um contexto de recessão faz aumentar a remuneração que o governo precisa pagar pelos seus papéis. Em um sistema em que não se pode mover a taxa de câmbio, as coisas não funcionaram na Argentina. Como não vão funcionar na Espanha, Portugal e Itália", afirmou José Luis Machinea, ministro da Economia do governo De la Rúa entre 1999 e 2001. Foi ele que, em dezembro de 2000, meses antes de sua queda, negociou um plano de ajuda internacional de US$ 39 bilhões, a chamada "blindagem".
A contrapartida era diminuir gastos públicos num momento em que o país já estava em recessão. Não se cogitava alterar a lei que impedia o peso de se desvalorizar em relação ao dólar. "Era uma tentativa de ganhar tempo, até chegarmos a uma situação em que o dólar perdesse valor no contexto internacional e assim diminuísse a nossa perda de competitividade", disse Machinea.
"A conversibilidade era insustentável desde a crise do México, em 1994. A partir daí todos os países foram flexibilizando o regime cambial, sempre com custos crescentes. A conta ficou amarga demais quando chegou a hora de De la Rúa governar", disse Lavagna.
Até este momento, o FMI e o Banco Mundial pressionavam por um aumento do ajuste fiscal, sem questionar a paridade cambial. Os organismos multilaterais reagiram de forma positiva quando De la Rúa substituiu Machinea por um ministro ainda mais duro, Ricardo López Murphy, em março de 2001. López Murphy propôs o corte de gastos com saúde e educação e foi demitido depois de apenas quinze dias de gestão. Já sob desconfiança dos mercados, assumiu em seguida o autor da lei de conversibilidade, Domingo Cavallo.
Em oito meses, Cavallo foi dobrando a aposta, com iniciativas como a lei do "déficit zero", que dava ao governo poder para suspender pagamentos de salário e aposentadorias de forma a ficar "superavitário". Mas o risco país passou dos 3.000 pontos em novembro e uma corrida ao sistema bancário fez com que a quantidade de depósitos caísse de US$ 85 bilhões para US$ 67 bilhões. Em 1º de dezembro, Cavallo estabeleceu um limite de US$ 250, ou 250 pesos para retiradas semanais. Era o chamado "corralito". Cinco dias depois, o FMI suspendeu uma parcela de US$ 1,2 bilhão de ajuda internacional. Uma onda de protestos e saques fez com que o presidente De La Rúa decretasse estado de sítio e toque de recolher em 19 de dezembro. A morte de 27 manifestantes em distúrbios de rua no dia seguinte levou à sua saída de helicóptero da Casa Rosada para a residência oficial de Olivos, onde renunciou em 21 de dezembro.
Como o cargo de vice-presidente estava vago, assumiu o presidente em exercício do Senado, Ramón Puerta, até a eleição pelo Congresso, para um mandato de 90 dias, do governador de San Luis, Adolfo Rodríguez Saa. O novo presidente declarou a moratória em 23 de dezembro, anunciou uma nova moeda três dias depois e renunciou com uma semana no cargo. O presidente da Câmara, Eduardo Camaño, assumiu então por 24 horas, até a eleição pelo Congresso de Eduardo Duhalde, para completar o mandato de De la Rúa.
O apoio peronista permitiu a Duhalde duas medidas impopulares: a desvalorização do peso e a pesificação dos depósitos bancários, até então em dólares, em fevereiro de 2002. O país só emergiu da crise no ano seguinte, com a eleição de Kirchner para a presidência, com apenas 22% dos votos.