Título: É um drama, e não é teatro
Autor: Exman,Fernando
Fonte: Valor Econômico, 21/10/2011, EU& fim de semana, p. 18/23

À beira de um default de sua dívida soberana, a Grécia encontra-se numa situação comparável a duas lendas da antiga mitologia helênica. Se quebrar, terá de renascer das próprias cinzas, como a ave Fênix. O governo grego pode, por outro lado, optar por levar adiante os impopulares ajustes fiscais e reformas de longo prazo demandados pela União Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu (BCE). Nesse caso, mais adequado será lembrar o mito de Sísifo. Castigado pelos deuses, Sísifo foi obrigado a levar uma pesada pedra montanha acima. Quando a missão quase era cumprida, o pedregulho rolava morro abaixo e tudo recomeçava.

Os protestos que tomaram o centro de Atenas quarta-feira, primeiro dia de uma anunciada greve geral de 48 horas, com choques entre manifestantes e policiais mais violentos que qualquer dos outros registrados nas últimas semanas, mostram como é pedregoso o caminho que a Grécia precisa percorrer - seja como a atormentada Fênix, em seus ciclos de vida e morte, ou como Sísifo, condenado à rotina de subidas e descidas sem fim.

Provas dos efeitos da crise financeira e econômica se acumulam nas ruas do centro nervoso de Atenas, delimitado pelas praças Omonia, Monastiraki e Syntagma. Em comum, as três áreas têm as lojas vazias, o lixo acumulado e o alto número de pedintes. Mas a crise se manifesta de formas distintas em cada uma delas.

O Parlamento se localiza em frente à praça Syntagma, onde também se concentram os prédios de vários ministérios. Justamente por esse motivo, é o alvo preferencial das frequentes manifestações promovidas pelas diversas categorias que se sentem prejudicadas pelas medidas de austeridade fiscal.

Os tumultos não costumam chegar às proximidades da praça Monastiraki, onde os turistas que não foram afugentados pelas cada vez mais comuns greves dos trabalhadores do setor de transporte público visitam ruínas, monumentos históricos e restaurantes. Vendedores ambulantes disputam com lojistas a atenção dos turistas, numa concorrência que algumas vezes ganha contornos pouco amistosos.

Não muito longe, pessoas circulam pela movimentada região da praça Omonia. Mas só durante o dia. À noite, apenas um desavisado não se afastaria do local, que pode facilmente ser confundido com alguma praça abandonada de uma grande cidade brasileira devido ao sem-número de usuários de drogas que ali buscam abrigo.

Nos últimos meses, no entanto, um fenômeno vem chamando a atenção de quem trabalha perto da praça Omonia: o aumento do número de lojas que compram ouro. Uma delas oferecia € 21,94 no último dia 10 por grama de ouro 18 quilates, valor bem inferior à cotação observada no fechamento da BM&F Bovespa daquele mesmo dia, de R$ 96, ou cerca de € 40 o grama.

Ilustrado por fotos de alianças, brincos, pingentes, colares e pulseiras, um panfleto do estabelecimento não deixava dúvidas sobre o público-alvo. "As pessoas estão vendendo mais (ouro) por causa da crise. Têm joias antigas em casa e estão aproveitando que o preço subiu", explicou o balconista da pequena loja.

As dificuldades financeiras das famílias têm outros impactos visíveis, como a queda do movimento do comércio. "Os gregos estão economizando. Os turistas compram como antes, mas os gregos contentam-se com bem menos. Estamos esperando para ver o que acontece", lamentou Ari Begoli, atendente de uma das tendas que vendem frutas secas, azeite, castanhas, pistache e caju no mercado central de Atenas.

Muitos gregos mostram-se esquivos quando se pede que opinem sobre a crise, mas aqui e ali não é raro ouvir queixas sobre os planos do governo de cortar os gastos públicos e pleitos para que a Grécia abandone o euro. Estão na mira do governo do primeiro-ministro George Papandreou os salários e o tamanho do funcionalismo público, o complacente sistema previdenciário e alguns mecanismos de proteção social. Já há, por exemplo, menos remédios à disposição dos pacientes nos hospitais públicos e faltam recursos ao sistema educacional.

A "troica", como é chamado o grupo de inspetores do FMI, da Comissão Europeia e do BCE responsáveis pela verificação dos ajustes econômicos em andamento na Grécia, não tem merecido os predicados mais elogiosos dos moradores de Atenas. "Não queremos mais o euro, mas sabemos que isso não pode acontecer agora. Precisamos do dinheiro da União Europeia", resumiu uma taxista, apesar das insistentes declarações de integrantes do governo grego de que o país não abandonará a zona do euro.

Como resultado dessa insatisfação, funcionários públicos e outras categorias prejudicadas promovem quase que diariamente protestos em frente ao Parlamento ou aos ministérios instalados próximos à praça Syntagma. Quando não se transformam em distúrbios mais violentos, as manifestações resumem-se a passeatas. Mas, às vezes, os manifestantes lançam mão de práticas mais heterodoxas.

Num dos protestos feitos na semana passada, dezenas de deficientes visuais foram colocados na linha de frente de manifestantes que criticavam o corte de recursos para a saúde, salários e pensões e tentava cercar a entrada do Ministério das Finanças. A polícia fez um cordão de isolamento para liberar a entrada do edifício aos servidores do ministério. Por alguns instantes, chegou a trocar empurrões com os manifestantes mais exaltados. Não houve, entretanto, um maior enfrentamento que colocasse a segurança dos deficientes visuais em risco.

"Querem fazer as reformas para manter os lucros dos bancos", vociferou Nicolas Papacostadinus, ligado ao partido comunista grego e um dos líderes da ação.

Outra manifestação tomou a praça Syntagma no dia seguinte. Dessa vez, com uma adesão muito maior. Idosos e mulheres dividiam espaço com homens prontos para um eventual embate com a tropa de choque da polícia, a qual impedia a aproximação da massa ao Parlamento.

Do alto do muro que separa a praça Syntagma e o platô onde foi erguido o Parlamento, o comando da tropa de choque observava a movimentação dos manifestantes. Alguns militantes provocavam os policiais. Outros tinham penduradas nos pescoços máscaras hospitalares, úteis contra bombas de gás lacrimogêneo. As bandeiras de uma ala dos manifestantes tinham hastes que poderiam servir de porretes se a até então pacífica marcha se transformasse num tumulto violento.

Os policiais, equipados com máscaras contra gás, escudos e capacetes, permaneciam imóveis. Pareciam lidar com algo que já virara rotina. "O governo está tomando medidas muito fortes. Não pelo povo, mas pelos bancos. Não me importo se será em euro ou outra moeda, só não quero que cortem o meu salário", afirmava Marina Tabi, professora de jardim de infância, que participava do protesto ao lado de uma colega de trabalho.

Do outro lado da barreira policial, o governo do primeiro-ministro George Papandreou negociava no Parlamento o pacote que tanto desagradava aos manifestantes e era considerado pelo mercado essencial para que o governo recebesse a ajuda financeira internacional necessária para pagar suas contas.

Dados oficiais apontam que a dívida pública da Grécia deve atingir 165,6% do produto interno bruto este ano -, um crescimento acelerado em relação aos 105,4% contabilizados em 2007. A expectativa é de que se consiga uma redução de 2,7 pontos percentuais até 2016.

As negociações entre a Alemanha e a França, principais forças políticas e econômicas da zona do euro, para a formatação de um plano de resgate da economia grega e de outros países com problemas em suas dívidas soberanas, serviam de pano de fundo para as manifestações na praça Syntagma e o trabalho de congressistas e técnicos do Ministério das Finanças. As conversas entre alemães e franceses eram também acompanhadas pelo mercado financeiro e governos de todo o mundo.

No final de setembro, à margem da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a missão liderada pela presidente Dilma Rousseff manteve encontros com diversos líderes globais. A comitiva brasileira ouviu de seus interlocutores que os europeus tinham como meta chegar à reunião de cúpula do G20, a ser realizada em Cannes no início de novembro, com um pacote para solucionar o problema já anunciado.

O desafio da Grécia, no entanto, não é nada simples. Segundo observadores estrangeiros baseados em Atenas, o próprio governo está dividido quanto ao alcance e a profundidade dos cortes que precisarão ser feitos para reduzir o déficit público. O Pasok, partido do governo e de orientação socialista, tem ligações com o funcionalismo público e não quer perder o apoio dessa parcela do eleitorado. Alguns de seus representantes no governo resistem à redução do tamanho do Estado e dos benefícios garantidos à população pelo sistema de seguridade social.

Além de engrossar a onda de protestos que toma Atenas quase diariamente, funcionários públicos ameaçam sabotar a implementação de medidas que ajudem a melhorar as contas do governo e dizem que farão de tudo para barrar privatizações. Mesmo assim, integrantes do Ministério das Finanças sustentam que as reformas darão as condições necessárias para que a economia do país volte a crescer de forma sustentável e receba novamente investimentos estrangeiros diretos.

A Grécia aderiu à União Europeia em 1981 e adotou o euro em 2001. Desde então, implantou um sistema de seguridade social mais amplo do que o verificado na maior parte do continente. O funcionalismo público grego, por exemplo, tem direito a dois salários adicionais por ano. A Previdência está sobrecarregada: alguns grupos da população chegam à aposentadoria aos 50 anos de idade. Segundo o FMI, excluindo as despesas com os juros da dívida, aproximadamente 75% dos gastos do governo grego são direcionados para o pagamento de salários e aposentadorias. O Fundo diz ainda que não há dados precisos sobre quantas pessoas trabalham no setor público.

Para observadores estrangeiros, não apareceu até agora na cena política grega uma força alternativa capaz de aglutinar os apoios necessários para a execução das reformas e ajustes fiscais demandados pela comunidade internacional e pelo mercado. A Nova Democracia, principal legenda de oposição, antecessora do Pasok no poder, é apontada como responsável por parte dos indicadores herdados pelo atual governo. Além disso, embora seja de centro-direita, a Nova Democracia passou a flertar com os eleitores insatisfeitos com as medidas do governo, observam analistas.

As perspectivas econômicas para a Grécia, que apresenta taxas crescentes de desemprego, não são animadoras. O governo de Papandreou sabe que terá dificuldades para obter novas fontes de arrecadação. O país tem uma balança comercial deficitária e a principal atividade econômica é o turismo, setor diretamente afetado pelas frequentes greves dos trabalhadores do setor de transportes públicos. "Até setembro, estava tudo ótimo, mas agora há uma redução nas reservas devido às greves. Os turistas de outros países estão com receio, estão cancelando suas viagens. Mas acho que isso não vai durar muito", comentou uma agente de viagens grega.

O governo de Papandreou afirma que reforçará o combate à evasão fiscal e defende um aumento da carga tributária. Em outro front, tem prometido investimentos em turismo e no desenvolvimento de fontes renováveis de energia. Até agora, contudo, tais promessas não se traduziram em melhoras nas estimativas para o crescimento da economia.

De acordo com o FMI, a economia da Grécia registrou uma retração de 4,4% em 2010. Para este ano, a projeção é de uma queda de 5,0% do PIB. Em 2012, a retração seria menor, da ordem de 2,0%. O Eurostat, instituto de estatísticas da União Europeia, também é pessimista. Projeta uma queda de 3,5% do PIB em 2011, ante um crescimento médio de 1,6% dos países da zona do euro.

Diante desse cenário, apesar de o comércio com a Grécia ter pouca representatividade para a balança comercial, as empresas brasileiras com parceiros no país mediterrâneo acompanham de perto os desdobramentos da crise econômica e financeira grega. Segundo especialistas em comércio exterior, o risco de a Grécia anunciar um default de sua dívida tem como consequência a redução da oferta de crédito para as empresas gregas e a falta de garantias de pagamento aos exportadores.

Pelo menos por ora, a Nicchio Café não enfrenta esses problemas. "Se você vender para uma empresa de primeira linha, você vai receber", comentou Tadeu Nicchio, diretor comercial da empresa. A Nicchio Café é fornecedora da Nestlé.

A Tabacos Marasca já sente dificuldades em negociar com um cliente grego que direciona 30% de sua produção de cigarros para o mercado doméstico e exporta o restante. "O mercado interno deles está desacelerado, a população não tem dinheiro. Os salários estão sendo reduzidos e eles estão cortando despesas", comentou o diretor de vendas da empresa, Maciel Marasca.

Nos oito primeiros meses deste ano, o Brasil obteve um superávit comercial com a Grécia de US$ 96,7 milhões, resultado de US$ 127,7 milhões em exportações e US$ 29,0 milhões em importações. Em 2010, o país vendeu US$ 175,1 milhões à Grécia. As importações somaram US$ 67,8 milhões no período. Os produtos mais exportados pelo Brasil são café, soja e fumo. O principal produto importado da Grécia é o mármore.

Na avaliação de autoridades brasileiras, o país não está exposto diretamente aos títulos da dívida grega. Não ficará imune, porém, se a crise contaminar bancos europeus e americanos, provocando maiores turbulências no mercado financeiro e a redução dos fluxos de comércio e investimentos internacionais.

O governo Dilma Rousseff tem cobrado decisões políticas das potências europeias para que a Grécia não seja levada a anunciar um default e tenha sua economia reduzida a cinzas. Ao mesmo tempo, a presidente declarou recentemente que o Brasil trabalhará para evitar que as exigências feitas pelo Fundo Monetário Internacional à Grécia ou a outros Sísifos não sejam tão restritivas quanto as impostas ao Brasil no passado.