Título: Conquistas e desafios chilenos
Autor: Jacques Marcovitch
Fonte: Valor Econômico, 13/07/2006, Opinião, p. A11

O Chile é quase uma unanimidade positiva em todas as avaliações sobre a América Latina. Desde 1990 vem se destacando na região como o país que mais compatibiliza indicadores de crescimento econômico e distribuição de renda, sem falar na estabilidade política ensejada pelos governos de sua Concertação partidária.

Qualifiquemos, com alguns números, estas afirmações. Nos últimos 15 anos, o Chile cresceu a uma taxa média anual de 5,7%, quase o dobro do que foi conseguido na ditadura de Pinochet. Este simples registro já invalida um equívoco mais ou menos generalizado, segundo o qual a solidez econômica é um legado precioso do regime de arbítrio às forças democráticas. Acrescente-se que, durante a ditadura, o índice de pobreza entre os chilenos passava de 38% e hoje se encontra na casa dos 19%. Isso evidencia claramente as opções de um e de outro regime.

Quase todas as crianças do Chile concluem a educação primária e aproximadamente 90% chegam ao fim do segundo grau. Houve notável incremento em recursos pedagógicos, remuneração de professores e tempo dedicado à aprendizagem. A democracia permitiu que 70% dos estudantes universitários fossem os primeiros, em suas famílias, a chegar ao ensino superior. Quatro, em cada grupo de dez jovens, ingressam na universidade. Mesmo assim, algumas deficiências no ensino secundário levaram à rua um milhão de estudantes, em marchas de protesto, logo em seguida à posse de Bachelet.

Os governos democráticos triplicaram os gastos sociais, que hoje absorvem 70% das despesas públicas. Na América Latina, durante a confusa década de 90, o Chile foi o único país a diminuir o déficit habitacional. Em 2006, é novamente o único em condições de garantir que, dentro de oito anos, este déficit será eliminado.

Embora a sua Lei de Responsabilidade Fiscal ainda esteja em tramitação, o Chile tem uma carga tributária moderada e adota procedimentos macroeconômicos inibidores da explosão de gastos e da inflação. A dívida pública entre 1990 e 2005 reduziu-se de 45% para 9% do PIB. Isso foi obtido sem prejuízo de uma política anticíclica em matéria de gastos, ou seja, mais flexível em casos eventuais de recessão, visando garantir sempre os níveis de produção e empregabilidade.

Em recente visita a Santiago, que coincidiu com o transcurso dos cem dias do novo governo, pudemos testemunhar as reações ao compromisso firmado por Bachelet de adotar 36 medidas para este período. A oposição, naturalmente, referindo-se ao envio ao Congresso de projetos do governo anterior, disse que "o executivo somente acrescentou a cereja numa torta já pronta". A Fundação Chile 21 reconheceu que as metas foram cumpridas em sua maior parte. Esta foi também a opinião expressa pela mídia local.

A maior preocupação detectada em nossos contatos foi com a segurança energética. O Chile importa 72% (gás, óleo, carvão) da energia que consome a cada ano. Os cortes no fornecimento de gás natural pela Argentina impõem a expansão da capacidade interna de geração de energia. A situação é delicada e a população continuará, nos próximos quatro anos, a enfrentar elevado custo de energia elétrica.

Quase todas as crianças do Chile concluem a educação básica, cerca de 90% terminam o segundo grau e quatro em cada 10 jovens vão para universidade O presidente Lagos aprovou uma legislação positiva sobre a matéria, mas cabe a Michelle Bachelet definir e executar urgentemente um Plano de Segurança Energética de longo prazo, evitando que o problema se alongue até a próxima década. É bem nítido para a sociedade que o Chile não pode seguir como dependente dos humores argentinos e dos seus imprevisíveis critérios no fornecimento de gás natural. Constatamos ali ambiente de espanto e revolta com o fato de o governo boliviano exigir da Argentina que mantenha os cortes e não redirecione gás para o Chile.

Há outros desafios. Vários anos depois da crise asiática, o Chile ainda guarda seqüelas, com largas faixas da classe média reduzidas à pobreza. As lideranças ouvidas e a própria administração reconhecem o despreparo nacional para o enfrentamento desta situação e propõem que se busquem medidas preventivas em face das incertezas na economia mundial.

Uma surpreendente fragilidade é a deficiência do sistema nacional de inovação no Chile. Os investimentos na área situam-se em níveis confessadamente baixos. Os avanços, quando os há, não são adequadamente resguardados por meio de patentes. A intenção do novo governo é aumentar em 50% os gastos em pesquisa e desenvolvimento e promover uma guinada de grande impacto: "Não se trata de fazer pequenas mudanças. Trata-se de criar uma nova política", afirma o programa de governo de Bachelet.

No mesmo documento é de ostensivo pragmatismo o capítulo referente às relações vicinais. Ali se confirma, por sinal, definição de política externa firmada recentemente pelo ex-chanceler brasileiro, Celso Lafer, segundo a qual o objetivo de toda política exterior é "traduzir necessidades internas em possibilidades externas". Para o Chile, o comércio internacional é chave mestra do desenvolvimento e daí o seu polêmico apoio, agora reafirmado, à criação da Área de Livre Comércio das Américas.

Chama atenção a ênfase conferida às relações com os Estados Unidos. Na formulação dos pontos de convergência com a grande potência do Norte, o Chile situa o projeto da Alca em patamar semelhante ao da defesa da democracia e do respeito aos direitos humanos. O Mercosul é mencionado sem qualquer destaque, e apenas como parte de compromissos multilaterais em que figuram os vínculos com a OEA, a ONU e a OMC.

Em conclusão, cabe enfatizar que a higidez democrática, obtida com grande habilidade pelos sucessivos governos da Concertação, está bem refletida no acordo para eliminar, em definitivo, o rescaldo institucional do período autoritário. Foi criado um novo estatuto para as Forças Armadas, restituindo-se plenamente a autoridade da presidência da República. O exército deixou de ser o único fiador da ordem e agora existe uma justiça constitucional para garantir a efetiva supremacia da Carta Magna. Consolida-se uma agenda para neutralizar o que o programa de Bachelet aponta, com todas as letras, como "a persistente intervenção militar na política".

Instituiu-se um arcabouço legal para evitar desvios éticos em campanhas eleitorais e no funcionamento da administração. Somente pessoas físicas, e não mais empresas, poderão fazer doações a candidatos. Foi aprovada a obrigatoriedade de declaração patrimonial para todos os servidores públicos, inclusive autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário. Sob muitos aspectos, principalmente em matéria de equilíbrio institucional, o Chile faz por merecer o acentuado e crescente grau de aprovação dos mais exigentes observadores da agenda latino-americana.

Jacques Marcovitch é professor de Estratégia Empresarial e de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo da qual foi Reitor. Autor da trilogia Pioneiros & Empreendedores e dos livros Universidade Viva e A Universidade (Im)possível, entre outros.