Título: Ensino público dos EUA é um desafio até para o casal Gates
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Fonte: Valor Econômico, 13/07/2006, Especial, p. A12

O que uma escola pública com problemas faz quando o presidente do conselho de administração da Microsoft, Bill Gates, e sua esposa, Melinda, batem à porta com US$ 1 milhão e um plano de resgate? A Manual High School, um prédio grande de 112 anos que atende vários bairros pobres de Denver, enfrentou esse dilema em 2000. Ela havia sido uma escola respeitada por muitos anos, com uma mistura de jovens brancos de classe média, que vinham de ônibus, e minorias menos favorecidas. A escola se saía bem nos testes gerais e tinha equipes esportivas boas. Mas quando o ônibus escolar obrigatório acabou, em 1996, o corpo discente da Manual High School passou a ser formado em 90% pelas minorias pobres. A escola logo despencou nos testes estaduais e a taxa de abandono foi para 50%.

Os Gates propuseram uma divisão dos 1.100 alunos em três escolas menores. A tese era que um ambiente mais intimista ajudaria alunos, professores e funcionários a desenvolver relações próximas, o que ajudaria no desejo das crianças de aprender e ficar na escola.

Mas mesmo o casal mais rico do mundo não conseguiu passar nesse teste. A divisão das escolas ocorreu rapidamente, antes que uma visão clara pudesse ser desenvolvida, sendo que cada uma delas deveria ter um tema, como liderança ou arte e cultura. Dois dos três diretores eram iniciantes, sem experiência para administrá-las. Como as escolas eram muito pequenas, elas não tinham como oferecer tantos cursos quanto antes. O francês foi eliminado, ficando apenas o espanhol para muitos alunos que já o falavam. As equipes esportivas tinham dificuldades para conseguir o número de integrantes necessários. Quando o coral foi limitado a só uma das escolas, o diretor mais popular pediu as contas.

Logo atletas, músicos e estudantes começaram a ingressar em outras escolas de Denver. Aí a prefeitura reduziu o corpo docente da Manual, lançando-a numa espiral de morte. "Os garotos que sobraram foram os mais problemáticos", diz Mariah Dickson, ex-conselheira da reforma da Manual, bancada pelos Gates. Com apenas 580 alunos esperados para o próximo ano letivo, a prefeitura de Denver está fechando a escola.

"Vemos a decisão de mudar os alunos da Manual para outras escolas como uma admissão de um fracasso completo", escreveu em abril o Superintendente das Escolas Públicas de Denver, Michael F. Bennet. Van Schoales, presidente da organização sem fins lucrativos dos Gates, que administra as doações do casal, reconhece: "Tentamos construir um avião ao mesmo tempo em que decolávamos."

O teste fracassado na Manual High School esteve entre as primeiras doações que a Fundação Gates fez como parte da decisão do casal, em 2000, de incluir o ensino fundamental entre suas causas filantrópicas. A fundação de US$ 29 bilhões (e que acabou de receber outro tanto do bilionário Warren Buffet) já lançou uma ambiciosa iniciativa global na área de saúde, para combater doenças como tuberculose e Aids na África e em outras regiões pobres do planeta. Os Gates decidiram ampliar os objetivos de sua instituição, incluindo o ensino público, cuja desigualdade nos EUA há muito os incomoda. A educação "criou um país que tem sido bastante inovador e que gera muitos empregos", diz Bill.

Após reunir uma equipe de especialistas, eles decidiram se concentrar nos alunos que abandonam a escola média, os 20% a 30% de adolescentes que não concluem os quatro anos de curso. A fundação abraçou o que muitos cientistas sociais viam como a melhor solução: em vez de dispersar os alunos em grandes escolas como a Manual High School, o pensamento foi dividi-los em programas menores, com 200 a 600 alunos cada. Fazer isso, segundo numerosos estudos, ajudaria a impedir que alunos difíceis perdessem o contato com a escola. A fundação não foi criada para projetar escolas nem para administrá-las. Seu objetivo era apoiar algumas experiências criativas e implementá-las.

Seis anos e uma íngreme curva de aprendizagem depois, os Gates perceberam o quanto muitos dos males que afligem as piores escolas dos EUA são intratáveis. A experiência tem sido difícil, humilhante até. Melinda Gates diz que ela e Bill não perceberam num primeiro momento quanta cooperação seria necessária das secretarias de ensino e dos Estados para mudar as grandes escolas tradicionais.

Visitas às 22 escolas americanas financiadas pelos Gates mostram que, embora o casal da Microsoft mereça todos os méritos por chamar a atenção para o problema da evasão escolar e por financiar a criação de algumas escolas promissoras, eles passam raspando quando a questão é a melhoria do desempenho acadêmico. Pesquisadores pagos pela Fundação Gates constataram no ano passado só uma pequena melhora no aprendizado de inglês e em leitura nas escolas ajudadas pelos Gates, com resultados bem piores em matemática. As notícias não são mais promissoras nas taxas de aprovação. Muitas das mil pequenas escolas que os Gates fundaram são novas e ainda é cedo para prever quantos de seus alunos vão concluir os estudos e entrar na faculdade, outro objetivo da fundação. O colapso da Manual é um caso extremo, mas é uma lição clara: criar pequenas escolas pode funcionar às vezes, mas não é uma panacéia.

O casal diz que os reveses não significam que eles desperdiçaram o US$ 1 bilhão que a fundação gastou até agora. Pelo contrário: vêem isso como pesquisa e desenvolvimento para educadores em nível nacional que estão tentando descobrir o que funciona e o que não. O currículo dos Gates mostra que, além de criar um conjunto mais personalizado, é vital contratar professores motivados e qualificados, além de instituir padrões acadêmicos mais rígidos. A evidência mais impressionante do que é possível fazer vem da cidade de Nova York, onde 14 escolas bancadas pelos Gates vão entregar este mês diplomas para 70% dos alunos, o dobro da aprovação das grandes escolas que elas substituíram.

Assim como os Gates ficaram escolados quanto às escolas, o mesmo ocorre com outros líderes empresariais. Da General Electric (GE) à IBM, executivos estão percebendo que as tradicionais doações de dinheiro e os dias de voluntariado bem intencionado podem ter ajudado algumas crianças ao longo do caminho, mas não tiveram um impacto nacional. "Não ficamos mais só preenchendo cheques. Esperamos um retorno de nossos investimentos em melhoria das conquistas dos estudantes", diz Dan Katzir, diretor da SunAmerica.

Os Gates acreditam já ter visto um retorno sobre os US$ 17 milhões que sua fundação aplicou na High Tech High, de San Diego, desde 2000. A escola se parece mais com uma empresa iniciante do setor tecnológico do que com um conjunto de salas de aula. Janelas no teto do prédio permitem a entrada da luz do sol e as manifestações artísticas dos alunos estão por toda parte. As qualidades que a Fundação Gates encoraja estão todas presentes na High Tech. Uma delas é um currículo rígido que cria expectativas elevadas. Embora a High Tech raramente use livros escolares, os alunos fazem pesquisas detalhadas para projetos complexos em equipe que combinam matemática, ciências e história. Os Gates buscam no ensino que é relevante para os alunos e os ajudará a manter o interesse, como o guia prático que os alunos da High Tech produziram sobre o meio ambiente na área da baía de San Diego.

Melvin Jackson, que em breve se forma na High Tech, mora num bairro chamado Encanto, infestado por gangues de rua. Ele vive com sua avó e um irmão de três anos. Conseguiu média B em disciplinas como cálculo, literatura inglesa e ciências ambientais. Após trabalhar no documentário rodado no México e em outros vídeos produzidos na escola, ele decidiu se tornar cineasta. No quarto trimestre ele vai para a Universidade Estadual de San Diego. Sem a inspiração que teve na High Tech, diz Jackson, "eu provavelmente estaria em uma gangue. Estaria morto".

Cerca de 99% dos alunos da High Tech se formou em 2005, contra a taxa de 85% do condado de San Diego. Isso é especialmente animador. Bill Gates já visitou a escola duas vezes e acha que de certa forma ela compartilha de algumas qualidades de sua "alma mater", a exclusiva Lakeside School, de Seattle. "Se as coisas certas são feitas com incentivo do professor, envolvimento do aluno e currículo", diz ele, "temos grandes resultados".

No nível nacional, novas versões da High Tech High não podem ser lançadas como se fossem cafés da rede Starbucks. Além de uma infusão de idéias e capital inicial, a reforma bem-sucedida de uma escola normalmente exige um diretor experiente, como o da High Tech, Larry Rosenstock.

Duas escolas da Pensilvânia foram excluídas porque queriam avaliar os alunos pela capacidade ou admiti-los de maneira seletiva. Os membros restantes da rede mantêm contato com a High Tech, mas Rob Riordan, um adjunto do diretor Rosenstock, diz: "Temos um controle menor nessas situações". É por isso que eles estão voltando suas atenções para a criação de escolas nos arredores, onde têm como transplantar gente de confiança do staff da High Tech.

A idéia das escolas pequenas continua sendo importante para os Gates. Um corpo vasto de pesquisas acadêmicas mostra que as escolas menores possuem taxas maiores de freqüência, aprovação e envolvimento dos pais. Os alunos também tendem a ser menos violentos. Muitos estudos, embora não todos, também já constataram ganhos nas conquistas acadêmicas. Então, por que a rodada inicial de investimentos dos Gates em pequenas escolas, na Manual High e outras, ficou só na promessa?

Os Gates perceberam o quanto muitos dos males que afligem as piores escolas dos EUA são intratáveis Em 2001, Tom Vander Ark, ex-superintendente de escolas de Federal Way (Estado de Washington), que preside a iniciativa da Fundação Gates para a educação, contratou dois grupos de fora para comparar as escolas bancadas pelos Gates com outras dos mesmos distritos. No ano passado, o American Institute for Research e a SRI International constataram que aquelas apoiadas pelo Gates criaram culturas agradáveis, o que elevou o nível de freqüência.

Mas os resultados acadêmicos foram decepcionantes. O inglês e a leitura melhoraram só um pouco, com 35% dos alunos das pequenas escolas fazendo trabalhos de qualidade moderada ou boa, em comparação a 33% nas grandes escolas. O objetivo das pequenas escolas de engajar os alunos em projetos que combinam matemática com outras disciplinas produziu resultados fracos porque o ensino rigoroso da matemática sempre recebeu pouca atenção. Só 16% dos alunos das escolas dos Gates atingiram a média em matemática, contra 27% nas escolas tradicionais.

Embora os resultados sejam preliminares, Vander Ark admite que a fundação deu ênfase demais em tornar as escolas menores e percebe agora o quanto é importante se concentrar no que ocorre na sala de aula. "Hoje somos mais explícitos quanto ao currículo."

Os Gates estão aplicando o que aprenderam em Nova York, seu esforço mais ambicioso na transformação de uma escola distrital. A fundação injetou mais de US$ 100 milhões desde 2000 para ajudar a criar cerca de 150 novas escolas pequenas, que têm hoje mais de 50 mil alunos. A maioria está operando parcialmente, uma vez que elas normalmente começam apenas na nona série e acrescentam uma séria a cada ano. Uma vez operando plenamente e com o corpo discente completo, essas escolas atenderão mais de um quarto dos 350 mil alunos do ensino médio de Nova York, diz Joel Klein, representante das escolas da cidade.

Alguns dos resultados iniciais mais promissores da campanha dos Gates vêm de Nova York, em parte porque a fundação vem trabalhando ativamente com a New Visions for Public Schools, uma organização sem fins lucrativos com longa experiência no desenvolvimento de pequenas escolas. Este mês, as primeiras 14 das 78 novas escolas primárias que os Gates criaram com a New Visions formarão suas primeiras turmas. Cerca de 70% dos alunos que começaram na nona série, há quatro anos, deverão se formar, diz a New Visions.

Isso é o dobro da taxa das escolas maiores que elas substituíram e bem acima da média de 54% da cidade de Nova York. De uma maneira mais ampla, em Nova York "um grande percentual dos alunos [das escolas da New Visions apoiadas pelos Gates] são encaminhados para se formarem pelo exame Regents [mais difícil]", diz Elizabeth R. Reisner, diretora da Policy Studies Associates, uma firma de estudos educacionais de Washington que vem avaliando as escolas da New Visions desde 2002.

Se isso pode acontecer no sul do Bronx, então pode acontecer em qualquer lugar. Aquela que já foi uma das piores escolas da cidade, a South Bronx High, é hoje lar da Mott Haven Village Preparatory High School, um enclave de 325 alunos em um andar e meio do prédio da velha escola (duas outras novas pequenas escolas ocupam os demais andares). Este mês, pelo menos 80% dos 81 alunos que começaram quatro anos atrás vão se formar. Desses, 55 já foram aceitos em faculdades. A taxa de conclusão na velha South Bronx High era de menos de 40%.

O renascimento da Mott Haven repetiu o começo da High Tech High. A diretora Ana Maldonado recrutou um staff quase que inteiramente novo. Os professores da escola antiga tiveram o direito de se inscreverem, mas Maldonado não escolheu muitos, preferindo ao invés disso educadores de outras escolas da cidade e de outras áreas. A excitação gerada pela reforma bancada pelos Gates atraiu Mike Lamb, 29, um esbelto idealista criado em Scarsdale, Nova York, e que cursou a Faculdade de Educação de Harvard. Ele diz que a confiança que ganhou dos alunos como técnico de basquete o ajudou a convencê-los a se esforçarem mais nas redações feitas em classe.

A parceira da escola na comunidade, a East Side Settlement House, contribuiu com nove funcionários para o ensino de gerenciamento de tempo, disciplina e como ter sucesso nas provas. Assim que os alunos começam a atingir o nível desejado, o dinheiro dos Gates ajuda a pagar os cursos preparatórios para uma espécie de vestibular e aquele rito de passagem da classe média que é o tour pelas faculdades. A recompensa: embora só cerca de metade dos alunos do ensino médio passem no exame Regents do Estado, necessários para a formatura, 86% dos alunos da Mott Haven foram aprovados na prova de história, enquanto 96% foram aprovados na de matemática e 98% passaram na de inglês.

Mas o sistema de ensino de Nova York é gigantesco e partes dele são profundamente disfuncionais. Por mais otimista que a Policy Studies Associates seja em relação ao programa dos Gates, esse grupo de pesquisas alerta que algumas escolas de Nova York que a fundação tem ajudado, não responderam tão bem como a Mott Haven.

Em seu mais novo relatório, que deve ser publicado no fim deste mês, a Policy Studies constatou que apenas um terço das escolas que ela visitou se beneficiaram de parceiros da comunidade tão prestativos como a East Side Settlement House. Outro um terço tinha "parcerias ineficientes", nas quais organizações sem fins lucrativos de fora entraram em confronto com as escolas ou fizeram um trabalho inconsistente. Os pesquisadores alertam que as tensões sociais estão aumentando em algumas das novas escolas na medida que elas acrescentam mais séries e alunos. Como resultado, o percentual de alunos suspensos nessas escolas triplicou, de 2% no ano letivo de 2002-2003, para 6% no ano passado, média que é mais ou menos a do sistema educacional dos EUA.

"A transição das velhas e grandes escolas para as pequenas escolas tem sido mais complicada do que esperávamos", diz Hughes da New Visions. Em poucos casos, "nós removemos diretores e mudamos de parceiros". Se essas escolas não melhorarem, ele não titubeará em fechá-las.

Melinda Gates diz que onde houver problemas, ela e seu marido não têm medo de "pegar os resultados negativos, divulgá-los e dizer: 'Sim, eis algumas coisas que estamos descobrindo. Vamos conversar sobre isso e arrumar o jeito de resolver o problema' ".

Uma conclusão que não deve mudar: começar escolas do zero é bem mais fácil que tentar consertar escolas falidas. Vander Ark diz agora que ao menos 1.000 das 20.000 escolas médias públicas dos EUA são casos perdidos e que deveriam ser fechadas. Pode ser, mas a verdadeira questão é se sistemas educacionais financeiramente carentes podem reunir liderança e conhecimento para criar substitutos mais eficientes.

Em Denver, a decisão de fechar a Manual High provocou a ira de muitos moradores, que interpretaram a medida como um ataque aos alunos negros e latinos que ainda estavam matriculados na escola, que estava afundando. Mas funcionários da Secretaria da Educação afirmam que não tinham escolha. Com tantos alunos abandonando a escola, "num futuro próximo, não poderíamos nem oferecer o número mínimo de aulas exigidas", diz o Bennet.

Quase seis anos em seu aprendizado sobre a inadequação das escolas americanas, Bill e Melinda Gates afirmam que, apesar dos erros, eles estão comprometidos como nunca. Sua fundação redirecionou seus esforços nos últimos dois anos para tentar resolver as falhas do ensino médio de um modo mais sistemático. Estão financiando essa reforma empresas como a Achieve, defensora de padrões acadêmicos rígidos, que está apoiando melhorias na maneira como os distritos locais avaliam as provas. Em abril, ela doou US$ 21 milhões para a Secretaria de Educação de Chicago, em parte para o desenvolvimento de um currículo preparatório para a faculdade, uma meta corajosa numa cidade em que a taxa de evasão é de 46%.

Melinda diz que ela e Bill estão acertando o passo. "Isso é algo que vai acontecer por muito tempo. Procure-me em 20 anos e eu ainda estarei enfrentando o problema."