Título: Bens pessoais na mira da Justiça
Autor: Cristine Prestes e Zínia Baeta
Fonte: Valor Econômico, 04/07/2006, Legislação &, p. E1

Há cerca de dez anos, um advogado sócio de um escritório de pequeno porte localizado em São Paulo atuou como procurador de uma empresa estrangeira que se tornou sócia minoritária de uma companhia de componentes eletrônicos por meio de uma sociedade formada no Brasil. A indústria não deu certo, tornou-se devedora do fisco estadual e foi inscrita na dívida ativa da Fazenda paulista. Para executar o débito, a Fazenda colocou no pólo passivo da ação judicial os ex-diretores da indústria e de sua acionista minoritária e também o advogado que assinou o contrato social, mas que já havia deixado de fazer parte dele desde o início do investimento. O resultado: o advogado, colocado entre os réus da ação como responsável solidário pela dívida, foi intimado do processo há cerca de um ano, teve duas tentativas de recurso negadas pela Justiça e foi obrigado a obter uma fiança bancária no valor de R$ 500 mil para garantir o débito e se defender no processo de execução, que corre na primeira instância da Justiça de São Paulo.

Casos como este estão se tornando comuns no Brasil, seja no âmbito fiscal, trabalhista ou previdenciário. Amparados por legislações que surgiram ao longo dos últimos anos e que buscam a responsabilização de sócios e administradores de empresas pelas dívidas e danos causados por elas, juízes federais, estaduais e trabalhistas têm garantido às Fazendas federal e estaduais, ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a trabalhadores que cobram dívidas de ex-patrões o pagamento de débitos por meio dos bens dos executivos quando o patrimônio das empresas já não é suficiente para quitá-los. "Os outros sócios e administradores sumiram e a execução recaiu sobre mim, que estava apenas no efetivo exercício de minha profissão como advogado, o que inclui assinatura de contrato social de empresa", diz o advogado, que prefere não se identificar.

A legislação brasileira prevê duas possibilidades de sócios e administradores responderem com seus bens pessoais por débitos das empresas das quais fazem parte. Uma delas, chamada de responsabilidade solidária ou subsidiária, está presente no Código Tributário Nacional (CTN) e na Lei das S.A., que estabelecem que executivos são responsáveis pelas obrigações das sociedades desde que tenham agido com dolo ou culpa ou com violação à lei. Em outra situações, uma série de leis que entraram em vigor a partir do início da década de 90 traz a figura da desconsideração da personalidade jurídica nos casos - uma exceção ao princípio da separação patrimonial da empresa e dos seus sócios e que permite a extensão de obrigações aos administradores em casos de fraude.

Segundo especialistas, as previsões da legislação brasileira seguem uma tendência mundial que teve início em 1809 nos Estados Unidos e que chegou ao Brasil na década de 60, mas que, hoje, vem sendo utilizada de forma abusiva no país. De acordo com o advogado Flávio Maia Fernandes dos Santos, consultor jurídico do Unibanco e coordenador do curso de direito contratual do GVlaw, o desenvolvimento do comércio no mundo ocorreu na medida em que houve a separação do indivíduo e da pessoa jurídica, e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi criada como a exceção para ser utilizada quando a empresa é usada de forma abusiva.

"O que era exceção passou a ser regra", diz Maia. Ele afirma que o abuso na desconsideração da personalidade jurídica de empresas pode afetar investimentos e negócios e criar uma desvantagem competitiva no país. Como exemplo, ele cita os fundos de private equity estrangeiros que investem em empresas brasileiras e depois vendem sua participação. Em um desses casos, o executivo de um fundo que fazia parte do conselho de administração de uma empresa que recebeu investimentos teve sua conta bancária penhorada pela Justiça do Trabalho para garantir uma dívida trabalhista em uma ação movida por um ex-funcionário - mesmo que o fundo de private equity já tivesse vendido sua participação na empresa e o executivo também não fizesse mais parte do conselho há anos. A descoberta da ação judicial ocorreu somente quando a mulher do executivo teve um cheque recusado em um supermercado.

Embora a responsabilidade solidária e a desconsideração da personalidade jurídica não estejam previstas na legislação trabalhista, é justamente na Justiça do Trabalho onde ocorrem os casos mais polêmicos. Eles vêm aumentando em quantidade e se tornaram a dor-de-cabeça dos empresários depois da popularização da penhora on line. O ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Vantuil Abdala, explica que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) têm uma previsão embrionária da questão. De acordo com Vantuil, a CLT prevê que o empregador é a empresa e ela responde pelas dívidas, mas se os sócios transferiram para si o patrimônio da pessoa jurídica, então os bens deles poderiam ser penhorados. O entendimento, segundo ele, foi consagrado pelo Código Civil, que ampliou a possibilidade para os sócios não-dirigentes.

O ministro, no entanto, afirma que a corte tem orientado os juízes a terem cautela na penhora de bens de sócios - e mais ainda de ex-sócios. "Quando o autor da ação requer a penhora é fundamental que demonstre a responsabilidade do sócio ou do ex-sócio", afirma. Segundo o ministro, a principal situação que gera a responsabilização dos sócios é a dissolução irregular da empresa, ou seja, a paralisação das atividades sem a formalização de extinção do empreendimento. "A empresa entra em insolvência, mas os sócios tiram para si valores consideráveis, dilapidam os bens para escaparem das dívidas", diz. Segundo Vantuil, situações como essa é que geram a possibilidade de chamar os sócios a responderem pelas dívidas. Em relação aos ex-sócios, o ministro afirma que eles só são chamados no processo se a empresa já era insolvente na época em que deixou a sociedade. "Fora essa hipótese não é possível", afirma.

Na prática, no entanto, a mira no patrimônio de ex-sócios tem sido usada como uma forma de pressão para o pagamento de dívidas trabalhistas. O advogado Marcelo Mansur, sócio do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados, conta o caso de um ex-sócio de uma empresa de tecnologia de médio porte - que há muito já havia saído da sociedade - que teve R$ 15 mil bloqueados de sua conta bancária. Segundo Mansur, o ex-funcionário entrou na Justiça do Trabalho contra a empresa e seu dono, mas como sabia das dificuldades do empresário, juntou um documento societário ao processo onde constava o nome do antigo sócio, que já havia vendido sua parte, para que este pressionasse o atual.

No campo fiscal, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) só admite a responsabilização de sócios, diretores ou gerentes da empresa devedora quando há comprovação de que eles agiram com excesso de poderes ou infringiram a lei no exercício de suas funções, como prevê no Código Tributário Nacional (CTN). Segundo o procurador da Fazenda Nacional e ex-procurador-geral adjunto do órgão, Francisco Tadeu Barbosa de Alencar, no excesso de poder, o administrador age além do estabelecido para seu mandato e interfere no pagamento do tributo. "É como se o administrador pegasse o dinheiro destinado ao imposto de renda e preferisse deixar o pagamento de lado para fazer uma aplicação financeira com o montante", diz.

Segundo Alencar, a Fazenda Nacional defende a tese de que o não-pagamento das obrigações tributárias já seria uma infração à lei. Mas esse não tem sido o entendimento majoritário da Justiça. "A jurisprudência diz que nesse caso há que se caracterizar o dolo, o que é muito difícil de ser comprovado porque o empresário sempre vai alegar fatores econômicos para o descumprimento da obrigação", afirma. Por outro lado, o STJ pacificou o entendimento de que a dissolução irregular da empresa - como deixar de dar baixa na junta comercial - caracterizaria uma forma de infração à lei. Hoje, na maior partes dos processos que tramitam nos tribunais é alegada a dissolução irregular para justificar o redirecionamento da ação para os sócios. Essa tem sido a situação mais aceita pelo Judiciário, inclusive pelo STJ, que muitas vezes é comprovada pela não-localização da empresa pelo próprio oficial de Justiça.

O advogado Plínio Marafon, do escritório Braga & Marafon, afirma que o maior problema desses processos é que eles costumam pegar de surpresa os ex-dirigentes. "Como o trâmite do processo é longo, muitas vezes o ex-diretor vai descobrir que faz parte do processo dez, doze anos depois que já deixou a empresa", afirma. Situação semelhante ocorreu com um cliente do advogado: o ex-presidente de uma empresa que responde por uma dívida de R$ 25 milhões foi pego de surpresa com a penhora de sua fazenda. Ele saiu da empresa há 12 anos e hoje está aposentado. "Meu cliente simplesmente não foi avisado do processo pela empresa, soube da ação somente quando recebeu uma intimação que dava cinco dias para que ele oferecesse bens à penhora", conta. Em razão de situações como essa que Marafon aconselha os executivos, quando deixarem a empresa onde trabalham, a levarem consigo o maior número de documentos possíveis que possam comprovar a inocência em casos como esse. "É importante ter em CD cópias de balanços e outras contas contáveis", diz. Ele também acha conveniente que os executivos façam um monitoramento das ações nos tribunais e no Conselho de Contribuintes.