Título: Cotas raciais dividem intelectuais e ativistas
Autor: Raquel Ulhôa
Fonte: Valor Econômico, 05/07/2006, Política, p. A8
Depois que intelectuais e artistas contrários aos projetos de Lei das Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial entregaram documento aos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), no dia 29 de junho, com 114 assinaturas, ontem foi a vez de os defensores da proposta se posicionarem. Renan e Aldo receberam nessa terça-feira manifesto subscrito por 425 professores universitários e lideranças de movimentos sociais, com apoio de outros 157 estudantes. Os manifestantes pró-cotas e estatuto criticaram o grupo de intelectuais e artistas que se opõe às propostas. O documento entregue ontem considera o quadro de exclusão racial no ensino superior no Brasil "um dos mais extremos do mundo", e diz que essa desigualdade só será combatida com "ações afirmativas, baseadas na discriminação positiva".
"Se os deputados e senadores não aprovarem os projetos, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do Estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente", diz o manifesto.
As duas propostas polêmicas estão tramitando na Câmara. O projeto das cotas, que aguarda votação em plenário, reserva 50% das vagas nas universidades federais para estudantes de escolas públicas, sendo que parte desse percentual será destinado a negros e indígenas. A quantidade de vagas será calculada com base no índice dessas populações em cada Estado, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Depois de aprovado na Câmara, será submetido ao Senado. Após a sanção presidencial, o projeto valerá para o vestibular seguinte. O programa de cotas tem prazo de duração de dez anos, para posterior avaliação. Várias universidades estaduais e federais do país já adotam a política das cotas, mesmo sem uma determinação por lei federal.
O projeto que cria o Estatuto da Igualdade Racial já foi aprovado pelo Senado, mas na Câmara a tramitação está atrasada, ainda na fase de análise pelas comissões. A proposta destina, para negros, 20% das vagas nos cargos em comissão e assessoramento de nível superior da administração pública. Na esfera federal, esse percentual deverá atingir o índice da estrutura demográfica de raças em escala nacional - calculado em aproximadamente 50%.
O estatuto também determina que empresas beneficiadas com incentivos governamentais devem adotar programas de promoção de igualdade racial e que os meios de comunicação apresentem, em filmes, programas e publicidade, 20% de afro-brasileiros. Além disso, todos os documentos do Sistema Único de Saúde (SUS) terão de registrar a raça dos usuários.
Contrário às duas propostas, o documento dos intelectuais entregue aos presidentes do Senado e da Câmara na semana passada, intitulado "Carta Pública ao Congresso Nacional", afirma que elas ameaçam o princípio constitucional da igualdade política e jurídica dos cidadãos.
"Se os projetos forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela 'raça'. A história já condenou dolorosamente estas tentativas", diz a carta, que tem, entre outras, as assinaturas dos cientistas políticos Bolívar Lamounier e Wanderley Guilherme dos Santos, do cantor e compositor Caetano Veloso, do poeta Ferreira Gullar, do cineasta Zelito Vianna e professores universitários das áreas de antropologia e de ciência política, como Gilberto Velho, Eunice Durhan, Luiz Werneck Vianna, Maria Hermínia Tavares de Almeida e Oliveiros Ferreira.
O documento criticando as cotas e o estatuto foi entregue pela antropóloga Yvonne Maggie, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pelo militante negro José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista. "Corremos o risco de dividir a nação brasileira entre brancos e negros", afirmou a antropóloga a Renan e Aldo. O principal argumento é que as propostas vão acentuar a discriminação, em vez de combatê-la, ao dar respaldo legal ao conceito de raça.
Para o grupo, "o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e Previdência e, em especial, a criação de empregos".
Essa posição foi criticada por setores de movimentos negros presentes à audiência de ontem com Aldo e Renan, em que se apresentou o documento de apoio às cotas. Segundo Zélia Amador de Deus, professora de literatura da Universidade Federal do Pará, estudos do Ipea mostram que as políticas universalistas não são suficientes para reduzir as diferenças entre brancos e negros. O documento entregue em defesa dos dois projetos cita que convenções internacionais, inclusive da ONU (Organização das Nações Unidas), reconhecem a adoção de ações afirmativas como importante mecanismo para conseguir a igualdade racial e que elas já são implantadas em vários países.
"Existe uma forte expectativa internacional de que o Estado brasileiro finalmente implemente políticas consistentes de ações afirmativas, inclusive porque o país conta com a segunda maior população negra do planeta", diz o manifesto, que tem, entre seus apoiadores, os professores universitários Fábio Konder Comparato (USP), Emir Sader (UERJ) e Muniz Sodré (UFRJ), artistas como o ator Paulo Betti e representantes de movimentos negros.
O presidente do Senado afirmou ser favorável às duas propostas. "No Brasil nós temos o modelo das cotas. Se precisa ser aperfeiçoado, vamos aproveitar a oportunidade da discussão na Câmara para fazê-lo. Se existem posições contrárias, cabe ao Parlamento condensá-las, encontrar o denominador comum e ter uma política eficaz de combater a segregação social, seja qual for: de gênero, regional, sexual".
Já o presidente da Câmara afirmou que a luta contra o racismo e pela igualdade racial "é parte integrante da luta pela igualdade social e pela democracia" e defendeu que os parlamentares busquem propostas "mais ajustadas à realidade do nosso país, sem importar modelos que podem ter dado certo lá fora, mas, muitas vezes, não são compatíveis com a nossa realidade nacional".