Título: EUA temem nova onda protecionista
Autor: Francisco Góes e Catherine Vieira
Fonte: Valor Econômico, 31/07/2006, Brasil, p. A4

Susan Schwab, representante de comércio dos Estados Unidos, admite que a falta de acordos de liberalização comercial, após o fracasso das negociações na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), pode levar ao recrudescimento do protecionismo no mundo e também a um aumento dos litígios comerciais entre os países-membros. "Mas espero que esse não seja caso", disse, em entrevista ao Valor, após reunir-se com o ministro Celso Amorim, para discutir o futuro da Rodada.

No encontro, ela e Amorim concordam que algum avanço forte, para a retomada das negociações, terá que ocorrer nos próximos cinco a sete meses de forma a terminar a Rodada em "tempo razoável".

Franca, em sua primeira visita ao Brasil, Susan admitiu que não tem nenhuma idéia quanto tempo o governo americano vai demorar para conseguir nova autorização do Congresso para que ele - o governo - negocie acordos comerciais na OMC, já que a atual vence em meados do próximo ano. Para ela, talvez seja preciso adotar uma dinâmica diferente de negociação entre os países, capaz de levar Doha adiante. "Porque a que tivemos até aqui não teve sucesso", diz ela. Quem são os responsáveis? "Todos", responde.

Susan também não descarta a possibilidade de um acordo para formar a Área de Livre Comércio nas Américas (Alca), a depender do desfecho da Rodada Doha. Os EUA, lembra, estão em posição de negociar acordos de livre comércio agressivos com países que tenham disposição de fazê-lo. Para o Brasil, avalia, acordos bilaterais e regionais são insuficientes para cobrir os ganhos que o país teria com um bom acordo na Rodada Doha. A seguir os principais trechos da entrevista, concedida no hotel Copacabana Palace, no Rio.

Valor: Na reunião de trabalho com o ministro Celso Amorim foi possível encontrar caminhos para criar avanços nas negociações?

Susan Schwab: Eu não acho que nenhum de nós pensou, quando decidimos ter esse encontro, que poderíamos, em uma semana, estar aptos a chegar a um avanço forte para a Rodada Doha. Todos os ministros envolvidos na negociação vêm trabalhando por cinco anos e não encontraram esse avanço forte. Não acho que isso é algo a que aspirávamos com este encontro, mas nós dois sentimos que o encontro valeu muito à pena por inúmeras razões. Primeiro, foi importante mostrar que nós realmente queremos uma negociação bem sucedida em Doha. Enviamos um sinal para o resto do mundo que ainda estamos comprometidos com a Rodada, que ela não morreu. O segundo objetivo foi começar um processo que sabemos que será difícil e longo, para ver se há um caminho para a frente. Fracassar depois de cinco anos significa que estávamos fazendo algo errado. Ou porque não estivéssemos usando os processos certos, os países certos, ou porque não estávamos sendo completamente honestos uns com os outros.

Valor: Os países podem voltar a negociar as mesmas propostas que foram deixadas sobre a mesa quando as conversas fracassaram?

Susan: Nós precisamos explorar o processo, os 'players' e o conteúdo da proposta e ver onde as coisas podem ser feitas de forma diferente porque o que fizemos nos últimos cinco anos não funcionou. Um mês atrás, na reunião ministerial da OMC, o G-6 (EUA, Brasil, UE, Japão, Índia e Austrália) recebeu a incumbência de tentar conseguir um avanço. E o G-6 não foi capaz de conseguir isso. O que isso significa? Que talvez devessem haver outros grupos, outras configurações, talvez nós devêssemos buscar uma dinâmica diferente que possa nos levar adiante, porque a que tivemos até aqui não teve sucesso.

Valor: Quem é o responsável pelo fracasso de Doha?

Susan: Eu acho que Pascal Lamy (o diretor-geral da OMC) está certo quando diz que todos os membros da OMC são responsáveis pelo fracasso da Rodada. Não acho que apontar o dedo para alguém agora seja útil. Vamos apenas dizer que todos somos responsáveis.

Valor: Qual o futuro da OMC depois do fracasso da rodada? Os acordos bilaterais podem se sobrepor aos acordos multilaterais?

Susan: Posso dar a visão e perspectiva dos Estados Unidos. Sendo ou não bem-sucedida, a Rodada Doha - e esperamos que ao fim ela tenha sucesso -, nós estamos completamente comprometidos com a OMC e o sistema de acordos multilaterais. Os EUA, neste governo, tiveram uma trilha paralela de negociação de acordos multilaterais e acordos bilaterais e regionais. E todos podem ter valor, se forem feitos corretamente. Seria nosso desejo continuar nesse caminho e eu não vejo isso como abandonar o sistema multilateral. A não ser que esse sistema nos abandone. Nós esperamos que a OMC possa continuar sendo vibrante e um espaço para negociar acordos multilaterais, sendo ou não bem-sucedida a Rodada Doha.

Valor: Como a senhora vê o cenário mundial para o comércio global? As reações protecionistas podem aumentar?

Susan: Uma das coisas que há nos acordos comerciais é a teoria da bicicleta que aponta um medo de que se não houver nenhuma negociação de liberalização em andamento pode haver um retrocesso. Ou seja, se não estamos nos movendo para frente, podemos cair. E o risco de não avançar em acordos de liberalização comercial é cair de volta no protecionismo. Eu espero que esse não seja o caso. Acho que a preocupação mais imediata com o fracasso em Doha é mais a questão dos litígios (disputas comerciais). Secundariamente, eu acho que há países, como a China, que provavelmente teriam maior ganho com o sucesso da Rodada. O Brasil também teria muitos ganhos com isso porque, se você observar o padrão de comércio do país, é com o mundo todo, por isso acordos bilaterais ou regionais nunca vão englobar todos os interesses comerciais do Brasil. Os interesses da China também são globais e eles estão bem vulneráveis ao protecionismo. Eu espero que nós não caiamos no protecionismo, mas é sempre um risco quando não se está com um processo de negociação em curso.

"Acordos bilaterais ou regionais nunca vão englobar todos os interesses comerciais do Brasil." Valor: Depois do fracasso da Rodada Doha por que os Estados Unidos ainda resistem a negociar um acordo com o Mercosul? Os EUA consideram a hipótese de um acordo no formato 4+1?

Susan: A maioria de nós, durante o curso das negociações da Rodada Doha deixou de lado possibilidades de negociações bilaterais e regionais. Os Estados Unidos vem negociando alguns acordos, assim como o Brasil. Mas esses acordos são secundários se você foca em um acordo multilateral. Eu não poderia começar a predizer o que faríamos na ausência da Rodada Doha. Eu diria duas coisas: uma é que quando os Estados Unidos negociam um acordo de livre comércio trata-se um acordo de alto padrão. Se você olhar outros acordos de livre comércio, acordos bilaterais e regionais, em muitos casos a única coisa que foi acertada para ir a zero (100% de redução tarifária) são as coisas menos sensíveis. E os produtos sensíveis são protegidos. Nós não fazemos isso nos nossos acordos de livre comércio. Nos nossos acordos de livre comércio tudo vai a zero ou quase tudo. Tudo se torna inteiramente acessível. Isso significa que estamos em posição de negociar acordos de livre comércio com parceiros comerciais que queiram esse tipo de acordo de comércio agressivo. Acordos de livre comércio não são presentes que os EUA poderiam dar ao Brasil e vice-versa. É um presente que você dá a você mesmo.

Valor: Qual a sua opinião em relação ao recente alargamento do Mercosul incluindo a Venezuela como sócio pleno e o convite feito a Cuba para somar-se ao bloco?

Susan: Eu não gostaria de comentar qualquer acordo regional de comércio de outros países.

Valor: A senhora acredita que Alca está morta?

Susan: Não. Eu não penso assim. Se voltarmos ao que aconteceu em Mar del Plata (na reunião de chefes de Estado das Américas, em 2005), 29 de um total de 35 países disseram vamos seguir em frente com as negociações da Alca. É uma clara maioria em favor do livre comércio na região. De novo. É uma dessas coisas que é difícil saber, é difícil prever e difícil de focar (nesse tema) até que tenhamos o resultado de Doha. Mas eu não diria que está morta.

Valor: Apesar do fracasso de Doha, os EUA vão cumprir a promessa feita em Hong Kong, na qual os países desenvolvidos eliminariam todos os tipos de subsídios à exportação no setor de algodão em dezembro deste ano?

Susan: A natureza das negociações na OMC na Rodada de Doha é algo chamado de 'single undertaken', o que significa que até tudo estar acordado, nada está acordado, ou seja, até que tudo esteja pronto para ser implementado, nada é implementado. Todos nós temos compromisso de eliminar todos os subsídios à exportação até 2013, o que é um movimento que nós gostaríamos muito de ver acontecendo, assim como várias coisas que foram tratadas na negociação de Doha, mas nada é implementado até que tudo esteja acordado. De qualquer maneira, na questão do algodão, os EUA já estão agindo, com a eliminação do 'step 2 program', que é o programa de subsídios que foi mais criticado pela OMC. Nesse caso, por exemplo, nós não esperamos até que a rodada esteja completa e o Congresso eliminou esse programa em dezembro e nos próximos dias o programa estará acabado.

Valor: Se o partido republicano perder o controle do Congresso nas eleições de novembro, isso terá impacto nas negociações de Doha?

Susan: Eu não acredito que teria um grande impacto por duas razões: uma é que nós sempre soubemos que não importa quando fosse finalizado o acordo final da Rodada, isso já seria depois desta eleição. Não havia chance de um acordo de Doha ser votado antes de novembro. Poderia o próximo congresso ser mais protecionista? Isso é realmente possível. No entanto, por exemplo, na proposta relativa à agricultura que colocamos na mesa em outubro, tivemos muito apoio tanto de democratas quanto de republicanos. Então a posição do governo em Doha é apoiada pelos dois partidos.

Valor: A senhora acredita que será possível renovar a TPA? Na última vez foram necessários oito anos para conseguir aprovação. Quanto vai demorar agora?

Susan: Eu não tenho absolutamente nenhuma idéia. Se você é a representante comercial dos EUA, você vai fazer tudo que estiver ao seu alcance para estender o TPA e ter o menor intervalo possível ou nenhum intervalo. Antes dessa última vez, todos os períodos em que o TPA expirou foram muito curtos. Esse intervalo de oito anos foi atípico e espero que possamos voltar aos padrões anteriores. No entanto, é muito difícil prever. A última extensão do TPA foi extremamente difícil de ser conseguida. Muito complicado politicamente, não importa quem esteja no poder.

Valor: O que a senhora acha do senhor Mandelson (o principal negociador europeu na OMC) e da sua estratégia de negociação?

Susan: (Pausa) Ah.. O senhor Mandelson tem que lidar com uma difícil base de apoio na Europa. Ele tem 25 países diferentes aos quais ele precisa satisfazer e muitos deles são bastante protecionistas na agricultura. Então eu não invejo a situação dele. Ah....e eu acho que vou parar por aqui (risos).