Título: Quando elas operam no mercado
Autor: Daniele Camba
Fonte: Valor Econômico, 09/12/2004, EU & Investimentos, p. D-1

Sujar de batom a camisa dos colegas barbados era a ameaça que Anete Ortiz usava para furar a barreira de operadores e, aos gritos, do alto de seus sapatos salto número quatro, comprar ou vender contratos futuros em nome dos clientes. Na época com 21 anos, Anete trabalhou no pregão da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e figura com orgulho entre as pouco mais de uma dúzia de mulheres que circularam nos pregões das bolsas brasileiras, conhecidos como barulhentos redutos de homens gritando o tempo todo em seus telefones sem-fio. Hoje, 18 anos depois, trabalhando em uma empresa de internet e longe do estresse do mercado, Anete se emociona ao entrar novamente no pregão. "Foi emocionante pisar ali de novo e rever pessoas queridas que me ajudaram, quase chorei", diz. Muita coisa mudou no mercado financeiro desde o tempo em que Anete fez sua estréia como operadora. O volume de negócios se multiplicou, boa parte das operações passou a ser feita eletronicamente, a segurança e rapidez dos negócios evoluíram junto com a tecnologia e os mercados locais e internacionais ficaram muito mais interligados. Só o que não mudou foi a predominância masculina no chão dos pregões. O "clube do Bolinha" continua a comandar os negócios viva-voz. Nesses 114 anos da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), apenas três mulheres trabalharam como operadoras de pregão. A primeira foi Luiza Pilosio, em 1975, tida como a figura mais marcante entre elas. Depois veio Maria Rita Marquesini e a última, em 1984, foi Cristina Dias de Souza, a única que continua no mercado, agora como diretora da corretora Dias de Souza, fundada por seu pai. Aos 66 anos, 36 deles vividos no pregão, Luiz Sposito, conviveu com as três operadoras. Conhecido pelo apelido de "Cegonha", é o operador mais antigo da Bovespa e ainda na ativa. Para ele, Luiza merece destaque especial. "Ela era firme, tratava os operadores de igual para igual, sem se comportar como sexo frágil e, se necessário, até falava palavrão para executar as operações", diz. A sua afirmação explica, em parte, o porquê do pregão ter se transformado em um ambiente masculino. É um trabalho que exige força física para aguentar o empurra-empurra das rodas de negociação e garganta potente, já que leva a melhor quem gritar mais alto. Para o diretor de pregão da Bovespa, André Demarco, agora seria muito mais fácil para uma mulher ser operadora, com a migração de boa parte dos negócios da tradicional gritaria do pregão para o sistema eletrônico, onde as ordens de compra e venda são feitas pelo computador. "As rodas hoje são muito mais tranqüilas, com menos operadores", diz. Em 1997, por exemplo, mais de mil operadores se amontoavam nas rodas de cada ação. Cada roda movimentava-se pelo pregão de uma forma que se assemelhava a uma briga entre gangues. Demarco é diretor de pregão desde 1990, nunca trabalhou com uma mulher como operadora e confessa que seria atípico se isso ocorresse, mais por falta de tradição do que por preconceito. O maior sinal de que a presença feminina não era algo comum e nem sequer esperada para o futuro é que até hoje não há banheiro feminino nos pregões das duas bolsas. Anete lembra que precisava subir dois andares para ir ao banheiro. "Eu esperava um momento mais calmo do pregão, para não perder bons negócios", diz. Tardiamente ou não, a Bovespa vai construir no ano que vem banheiros femininos. Sposito garante que nunca houve discriminação com o trio que passou pelo pregão. Mas deixa escapar: "Nunca falamos que o lugar delas era na cozinha." Ele lembra que o clima era de respeito com as colegas, com uma dose de proteção. "Quando elas estavam por perto, procurávamos não falar palavrão, e quando estavam dentro da roda, tomávamos o maior cuidado para não empurrá-las", completa Sposito. A BM&F não tem um levantamento oficial do número de mulheres que passou por lá. Mas, pelas contas de José Carlos Branco, diretor de pregão da bolsa desde a sua criação, em 1986, foram no máximo 12. "Algumas inesquecíveis", afirma, acrescentando que Lisa Suplicy foi a mais marcante delas. "Ela operava como os homens", diz. "Apesar de ser baixa, tinha um timbre de voz forte, que ajudava na hora de negociar", afirma o diretor. "Além disso, tinha firmeza para impor respeito entre os operadores." Ele reconhece que, se não existe preconceito, causa no mínimo estranheza uma presença feminina em um ambiente tradicionalmente masculino. Até por isso as poucas que passaram por lá foram obrigadas a ter firmeza redobrada para conseguir o mesmo respeito que havia entre os colegas homens. "No pregão prevalece a lei do mais forte e elas precisam ser fortes para sobreviver", conclui Branco.

O maior sinal de que a presença das mulheres não era algo comum dentro das bolsas é que os pregões até hoje ainda não têm um banheiro feminino

A firmeza e o timbre forte da voz de Lisa, que ficam claros em uma conversa por telefone, parecem ter dado resultado. "A minha estada na bolsa foi muito tranqüila, só tenho lembranças boas", diz Lisa, que desde 1997 está fora do mercado, para se dedicar à empresa de café da família. Lisa começou no mercado em 1978, como operadora na Bolsa de Mercadoria de São Paulo (apelidada de "Bolsinha"), que antecedeu a BM&F. Com 18 anos na época, Lisa foi trabalhar na mesa de operações da corretora de seu pai. Um mês depois, estava entediada com o ritmo e decidiu que queria trabalhar no burburinho do pregão, onde ficou por três anos. Lisa não lembra de um só momento em que tenha sido discriminada. Pelo contrário. Lembra de vários episódios em que seus colegas demonstravam querer protegê-la. Mas contratempos ocorreram. "Uma vez quase morri prensada no balcão onde fica o diretor do pregão." Lisa também encontrou formas de se impor. "Quando apregoava algo e os operadores pulavam em cima de mim, mandava fazerem fila e dizia que tinha para todo mundo", lembra, dando uma mostra da sua firmeza. Mas nem todas tiveram uma convivência tão fácil assim, principalmente no começo. Anete Ortiz passou por maus bocados. O clima era hostil. "Em alguns momentos, cheguei a me sentir um bicho, como se fosse inferior a eles." Mesmo em tom de brincadeira, Anete sentiu o peso da discriminação de estar em um ambiente considerado como "lugar de homem". "Ouvi muitas vezes que eu deveria lavar roupa, ou ir gritar na feira e não na orelha deles", lembra Anete, rindo. Aos poucos, ela mostrou a que veio e só então passou a ser vista como profissional. "Passei a ser respeitada depois de fechar várias operações antes deles." A grande diferença é que os homens não precisavam fazer o mesmo para provar competência. A ex-operadora também tem boas lembranças de colegas e até da bolsa. Alguns operadores, por exemplo, ofereciam boas ordens de compra ou venda primeiro para ela. Na época em que trabalhava lá, a direção da BM&F acabou com a obrigatoriedade de os operadores usarem paletó e permitiu que Anete trabalhasse de jeans. "Foi mais uma atitude simbólica de que também se preocupavam comigo." Assim como Lisa, Anete criou artimanhas para transpor a discriminação e a desvantagem física e conseguir trabalhar. "Para entrar na roda de operações, ameaçava sujar de batom a camisa dos homens, que rapidamente se afastavam", lembra. "Também cansei de entrar nas rodas passando por baixo do braço deles, às vezes até por baixo das pernas", brinca Anete. Cristina Dias de Souza é a única que continua no mercado, como diretora da corretora que leva o mesmo nome, fundada por seu pai Arthur Dias de Souza. O mercado está no sangue. "Durante as férias ligo todos os dias para a corretora e acompanho o mercado pela internet", diz Cristina. Mesmo quando a corretora ficou inativa, operava para a família. Ela começou como operadora da Bovespa em 1984, aos 23 anos, e percebeu pela TV como era inusitada a carreira que tinha escolhido. "No dia em que comecei, o Cid Moreira abriu o Jornal Nacional dizendo que uma mulher quebrava um tabu na bolsa", diz. Cristina afirma que era respeitada por seu colegas de pregão. E não atribui isso ao fato de ser filha de alguém do mercado. Apenas uma vez, um operador assobiou enquanto ela entrava no pregão. Cristina perguntou se a indelicadeza era para ela e imediatamente o colega se desculpou. Mais um sinal de que firmeza fez a diferença na rotina dessas mulheres. A dedicação à atribulada carreira teve seu preço. Cristina adiou o projeto de ser mãe, o que aconteceu apenas aos 41 anos. Ela não se arrepende do rumo que deu para a sua vida, mas acredita que deixou muita coisa em segundo plano por conta da profissão - família, amigos e horas de lazer. "Nunca tive tempo para fazer um curso, ir à ginástica ou sair mais cedo para ir ao cabeleireiro." Assim como Lisa, ela seguiu a profissão do pai e tocou os negócios da família, mas não gostaria que seu filho de quatro anos fizesse o mesmo. "É uma carreira muito cansativa, de 24 horas sob pressão." Mesmo à contragosto, Cristina vê claros sinais de que seu filho poderá ser o próximo a tocar os negócios da família Dias de Souza. "Ele adora ir à corretora e se diverte com tudo aquilo."