Título: O novo "crash" e seus efeitos
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2006, Opinião, p. A13

Em 1929, quando a bolsa de Nova York quebrou e, com ela, a economia americana, que levou de roldão outras áreas do globo, o mundo estava longe de viver o processo de integração financeira e comercial tão volumoso que vive hoje.

Essa condicionante que amarra mais ou menos todos os fluxos em uma mesma grande rede deixa de olhos arregalados alguns dos mais prestigiados analistas, sempre que se deparam com o tamanho do déficit em conta-corrente e do déficit público dos EUA. A preocupação dos que temem o chamado "hard landing", ou pouso forçado e desordenado da economia mundial, vem de longe. O acirramento da guerra no Oriente Médio e a escalada dos preços do petróleo só pioram o quadro. Mas, afinal, qual seria o impacto no mundo de um rompimento inesperado dos desequilíbrios globais, configurado na forma de drástica queda do dólar e do valor das ações e dos títulos de renda fixa nos EUA?

A resposta é dura. O impacto poderia chegar a cerca de 5% do PIB mundial, excluindo o PIB dos EUA, se a desvalorização do dólar e dos títulos americanos alcançasse inesperadamente a marca dos 10%, de maneira simultânea. O resultado leva em conta o montante de ativos financeiros americanos em mãos de investidores estrangeiros na posição de meados de 2004. Foi obtido por Francis Warnock, economista da Darden Business School, da Universidade de Virgínia, no levantamento que fez quando ainda era consultora do Fundo Monetário Internacional (FMI).

O texto do estudo, publicado no início deste mês pelo Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, tem o seguinte título: "How Might a Disorderly Resolution of Global Imbalances Affect Global Wealth?" ("Como um Desordenado Desdobramento dos Desequilíbrios Globais Pode Afetar a Riqueza Global?").

Francis Warnock baseou seus exercícios em informações envolvendo mais de 50 países. Os dados são expressivos devido à larga preferência dos investidores de todas as parte do mundo em aplicar suas poupanças nos ativos dos EUA ou denominados em dólar, atraídos não apenas pela liquidez mas também pela proteção que aqueles papéis garantem aos investidores estrangeiros.

Se o "crash" dos 10% nos ativos americanos acontecesse, todo o mundo ao redor dos EUA teria um empobrecimento da ordem de 5% do PIB ou de US$ 1 trilhão Em junho de 2004, o mundo (fora os EUA) detinha aplicações estimadas em US$ 5,1 trilhão em papéis de longo prazo americanos, dos quais US$ 3,2 trilhões, ou 63% do total, representavam bônus e US$ 1,9 trilhão em ações. No nicho dos títulos de renda fixa, os bônus do Tesouro detidos por estrangeiros somavam US$ 1,4 trilhão, enquanto que os papéis de renda fixa de emissão das grandes empresas envolviam US$ 1,2 trilhão. Cerca de US$ 600 bilhões equivaliam, em meados de 2004, a bônus emitidos por agências americanas.

Praticamente a totalidade de bônus do Tesouro americano, detida por estrangeiros em meados de 2004 (US$ 1,32 trilhão ou 90% do total acima), estava alocada como ativos da reserva internacional dos vários países, entre os quais o Japão detinha mais da metade (US$ 736 bilhões), seguido da China (US$ 320 bilhões), dos paraísos fiscais caribenhos (US$ 388 bilhões), Bélgica (US$ 285 bilhões), Luxemburgo, outro paraíso (US$ 230 bilhões) e do Reino Unido (US$ 221 bilhões).

A hipótese utilizada de queda de 10% no valor do dólar e no preço dos papéis americanos (renda variável e renda fixa) é aleatória. Francis apenas se pergunta que ramificações de primeira ordem ocorreriam na riqueza internacional (sob o ponto de vista dos EUA) se uma desvalorização daquela magnitude acontecesse.

Bem, os desdobramentos a que chegou são os seguintes: 1) uma queda no preço dos bônus (renda fixa) americanos de 10% mais uma desvalorização do dólar de 10% face as demais moedas forte representariam para os investidores estrangeiros (fora dos EUA) uma perda de riqueza equivalente a 2,5% do PIB de todos os países, exclusive os EUA; 2) adicionalmente, se os preços das ações americanas também caíssem 10%, os investidores estrangeiros detentores desses papéis sofreriam perda de riqueza equivalente a 1,5% do PIB; 3) mas os investidores estrangeiros também estão expostos aos mesmos efeitos daquela desvalorização de 10% dos ativos americanos nas posições que carregam de ativos emitidos por outros países mas denominados em dólar. Neste caso, o impacto da desvalorização do dólar representaria perda de riqueza equivalente a 1% do PIB.

No total, portanto, todo o mundo ao redor dos EUA teria um empobrecimento da ordem de 5% do PIB. Em termos de valor equivalente em moedas locais, aquela queda de 10% no valor dos ativos americanos significaria perda de US$ 1 trilhão na riqueza financeira do mundo fora dos EUA. Daquele valor, cerca de US$ 250 bilhões representariam perdas de posições em reservas internacionais.

Individualmente, por países, o Japão e a China sofreriam perda de riqueza equivalente a cerca de 4% do seu PIB. Mas outros centros não-financeiros com grandes exposições em ativos americanos teriam perdas ainda mais drásticas, como a Irlanda, cujo empobrecimento equivaleria a 14,5% do PIB; Taiwan e Holanda, com perda de riqueza da ordem de 8% do PIB cada um, além de Canadá, Noruega e Suécia, que se tornariam mais pobres no equivalente a 5% ou 6% do PIB.

O Brasil, que pelos cálculos da autora, detinha em meados de 2004 US$ 15,377 bilhões em títulos de renda fixa dos EUA, dos quais US$ 13,170 bilhões em bônus do Tesouro americano (praticamente tudo em posições das reservas internacionais do país), perderia o equivalente a 0,6% do PIB no caso de um choque da magnitude imaginada por Francis. Também haveria o impacto da desvalorização do dólar nos ativos emitidos por outros países (inclusive o Brasil) mas denominados em dólar. Esses ativos, no caso brasileiro, somavam US$ 73 bilhões em fins de 2003, dos quais US$ 17, 925 bilhões estavam nas mãos de investidores americanos.

Mas os EUA também seriam fortemente atingidos pelo "crash" dos 10%. No final de 2004, os investidores americanos (investidores privados, fora as grandes corporações) detinham cerca de US$ 12,7 trilhões de ativos americanos. Um choque nos termos simulados reduziria a riqueza doméstica no equivalente a quase 11% do PIB, ou US$ 1,3 trilhão. Só resta torcer para que o mundo consiga se acomodar sem maiores traumas.