Título: Inflação baixa, juro alto e muita paciência
Autor: Tatiana Bautzer e Humberto Saccomandi
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2006, Especial, p. A14

O Brasil precisa ter paciência para colher os frutos da política macroeconômica conservadora, afirma o presidente do Banco Central do Canadá, que visitou São Paulo na semana passada. David Dodge reconhece que é difícil enfrentar um período de baixa inflação e juros altos. "Há realmente um intervalo bem longo, não falo de décadas, mas de anos, entre o momento em que a inflação cai e o momento em que as expectativas estão firmes e permitem a queda das taxas de juro de longo prazo. No nosso caso, foi de meia década", diz. Dodge critica duramente a condução da economia pela Argentina após a crise, com taxa de juros real negativa para estimular o crescimento e controles de preços. Ele acredita que o país voltará em breve à hiperinflação. Numa palestra em São Paulo, Dodge defendeu a reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI) para lidar melhor com problemas como a subvalorização da moeda chinesa. Reuniu-se com o presidente do BC brasileiro, Henrique Meirelles, e com representantes de bancos privados. Simpático, Dodge estava animado com as temperaturas "do que vocês chamam de inverno" e preparava-se para a festa de aniversário de dois anos do neto. Sua filha, casada com um brasileiro, mora em São Paulo. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Dodge ao Valor.

Valor: Em que ponto está o processo de ajuste dos desequilíbrios na economia global?

Dodge: Já tivemos uma pequena melhora na demanda interna na Europa, a demanda do consumidor americano está enfraquecendo, há uma pequena melhora no Japão, e mudanças ainda muito tímidas nas políticas internas na China. Temos visto alguma depreciação do dólar. Estamos no rumo certo, mas para evitar uma grande contração na economia global, é necessária evolução das políticas dos países envolvidos.

Valor: O sr. espera que o dólar continue a se desvalorizar?

Dodge Esse é um tema interessante. O dólar já se depreciou em relação às principais moedas flutuantes, como o dólar canadense, ao real, ao euro. Mas não houve grande desvalorização nem relação ao iene nem ao yuan.

Valor: O sr. sugere que a China pode solucionar seu problema estimulando a demanda interna e não apenas valorizando sua moeda...

Dodge: Isso é perfeitamente factível. A China tem a alternativa de aceitar uma inflação maior. A dificuldade é administrar quanta inflação e quanta apreciação da moeda, já que eles têm um mercado financeiro interno muito subdesenvolvido. Teriam que coordenar isso no banco central e no ministério das Finanças. Nosso conselho é de que haja alguma apreciação nominal do yuan, porque isso seria mais fácil de administrar do que o controle da inflação, mas eles terão que fazer uma escolha. O que não é possível é não adotar nenhuma das duas alternativas.

Valor: O que pode acontecer nesse caso?

Dodge Eles continuariam a comprar dólares, elevar reservas, e controlar o nível de liquidez da economia. Assim eles restringiriam o desenvolvimento do mercado interno, ao invés de estimulá-lo. Há o grande risco de que a China seja vista como um país que não obedece às regras do jogo, e isso pode levar o Congresso americano, ou parlamentos europeus, a dar um basta e impor barreiras tarifárias ou não tarifárias às importações. Esse é um risco enorme, que seria prejudicial ao mundo.

Valor: O sr. mencionou na palestra a necessidade de ser paciente para estabilizar a economia. Há uma grande frustração com os juros ainda altos no Brasil...

Dodge: Há realmente um intervalo bem longo, não falo de décadas, mas de anos, entre o momento em que a inflação cai e o momento em que as expectativas estão tão firmes que derrubam as taxas de juro de longo prazo. Esse intervalo varia de país para país, dependendo do histórico, e quanto pior o histórico do país, maior é esse intervalo.

No nosso caso, foi de meia década. Conseguimos reduzir a inflação em 1991, 92, e as expectativas de longo prazo se firmaram em 1995, 96. E as taxas de juros de dez anos, que normalmente ficavam entre 2 e 3 pontos percentuais acima das taxas americanas agora estão entre 0,5 e 0,7 ponto acima. Tivemos inflação alta no Canadá, mas não tanto quanto a brasileira, e talvez leve mais tempo no Brasil.

Temos de ter paciência durante esse período terrível, no qual a inflação está dentro da meta há alguns anos, até que o mercado se disponha a comprar títulos de 10 anos ou a emprestar dinheiro para financiamento imobiliária a juros baixos. Quando as pessoas acreditarem nisso [na inflação baixa], não se comportarão como se fosse temporário. Se você tentar forçar a queda antes que as expectativas caiam, o risco é de retomar o processo inflacionário. Assim, é inevitável viver um período com inflação baixa e taxas de juros reais ainda altas.

No lado fiscal, é preciso transformar o círculo vicioso de criação de dívida num círculo virtuoso, com uma redução drástica das despesas, criando um grande superávit fiscal. Eu era vice-ministro de Finanças quando tivemos que cortar 25% das despesas nominais do governo num período de três anos, de 95 a 97. As despesas do governo federal caíram de 16% para 11% do PIB. Foi um corte muito grande, que doeu. Mas em 99 estávamos prontos para reduzir impostos e devolver à população. O custo do serviço da dívida, que estava em 30% da receita, está abaixo de 20% e cairá abaixo de 10% .

Valor: Mas é muito mais fácil fazer isso num país rico?

Dodge: Não conheço um só país que não ache que seus próprios problemas são piores que os dos outros. No caso do Brasil, a história é pior, talvez demore um pouco mais para começar a colher os frutos. Vocês têm que aguentar firme por mais tempo.

Honestamente, a má distribuição de renda também dificulta. Não sei se o nível geral de renda do país faz diferença, se é um país de renda baixa ou média, mas a distribuição realmente dificulta e reduz a paciência. Mas também no nosso caso há diferenças regionais importantes.

Valor: Alguns críticos questionam a política brasileira apontando o exemplo da Argentina, que tem taxa de juros negativa, inflação mais alta, de 11%, mas com isso está crescendo a 8% ao ano. E se perguntam se não seria melhor tentar isso.

Dodge: É muito tentador aceitar um ganho de curto prazo que provoque dor no longo prazo. Eles [a Argentina] estão correndo um risco muito alto de repetir os desastres de 2001 e 2002. Não existe almoço grátis. Se você sair gastando que nem louco sem condições para isso, vai pagar lá na frente. E a conta, quando chega, é cara, como bem sabem os argentinos.

Mas eu entendo, as pessoas querem comer o bolo hoje e têm esperanças de que ainda haja bolo amanhã. O presente é sempre mais importante que o amanhã.

Eu entendo que a situação da Argentina comparada com a do Brasil hoje, em julho de 2006, pode parecer invejável. Mas eu preferirei estar aqui em São Paulo em 2008 e 2009 do que em Buenos Aires, porque não é possível continuar com essa política por muito tempo.

Como ninguém gosta de inflação, eles estão tentando segurar criando controles de preços, que por sua vez distorcem ainda mais a economia. E aí você precisa de mais controles, mais controles, e eventualmente não há como segurar e você volta à situação que vocês enfrentaram há algum tempo, dos planos cruzeiro, cruzado, etc.

É uma pena, dada a situação que eles já enfrentaram, que estejam se colocando novamente em risco de um final doloroso.

Parece que o Brasil ficará com o mesmo arcabouço de política qualquer que seja o resultado das eleições" Valor: Mesmo quem apóia uma política ortodoxa lembra que o Brasil tem as mais altas taxas de juros do mundo. O remédio não pode matar o paciente?

Dodge: Não há dúvida, o remédio é amargo. O câmbio valorizado dificulta a vida de algumas empresas e setores, isso é verdade. Nós também estamos passando por isso, nossa moeda apreciou-se 35% em três anos, nossas companhias que têm que competir com as chinesas e americanas estão tendo problemas. Mas a consequência é a realocação de recursos na economia para as empresas mais produtivas, e no fim das contas isso aumentará a renda real dos canadenses.

No fundo, o cidadão comum é sábio e entende isso, ele vê que é melhor trabalhar num setor da economia com maior valor agregado. É difícil, essas transições provocam emoções populares. Algumas indústrias pedem, por favor, dê uma pequena melhorada no câmbio. Há sempre essa pressão. Mas se você olhar a história mundial e a história de países individualmente, fica claro que os que seguem políticas macroeconômicas sensatas têm um crescimento de renda maior e mais consistente. Isso não quer dizer que não haja coisas estruturais que possam ser feitas para melhorar o crescimento. Mas do ponto de vista de política monetária e fiscal, e de desenvolvimento dos mercados financeiros, uma taxa de câmbio flutuante é básica para o crescimento sustentado da renda dos cidadãos.

Valor: Qual é a percepção sobre as eleições no Brasil? Os investidores esperam a continuidade da atual política econômica, qualquer que seja o resultado?

Dodge Não é fácil julgar de fora, mas lembro bem da situação de 2002. Naquela época, o então presidente do Banco Central, Armínio Fraga, veio conversar conosco. Disse que a política econômica sensata seria mantida, mas que os mercados estavam ariscos, e pediu que provêssemos uma linha de crédito para que não houvesse problemas durante o período eleitoral. Ouvimos o Armínio naquela época, demos uma grande linha de crédito para o FMI. O presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] acabou seguindo políticas na tradição macroeconômica do ex-presidente [Fernando Henrique] Cardoso, a maior parte da linha de crédito nunca foi sacada, e hoje parece que o Brasil permanecerá com o mesmo arcabouço básico de política qualquer que seja o resultado das eleições. Mas é claro que eu estou falando apenas como representante de um banco central, pode haver percepções diferentes nos mercados.

Valor: O sr. mencionou na sua palestra a necessidade de reformar o FMI. O sr. discutiu com o governo brasileiro a posição em relação à reforma proposta?

Dodge - O ministro da Fazenda de vocês é novo, seria precipitado falar sobre a posição dele. Mas concordamos com a necessidade de aumento do papel de fiscalização do FMI, além da substituição da linha emergencial que não funcionou bem, a Contingent Credit Line (CCL). Temos trabalhado bastante em conjunto com os bancos centrais do México e Brasil nessas questões.

Nem sempre concordamos, mas temos uma boa relação de trabalho. Há a necessidade de aumentar a fiscalização da economia global, e de usar o FMI como um fórum para que as autoridades nacionais conversem entre si com base nas análises do Fundo. Isso é melhor do que simplesmente o FMI falar com os países individualmente como se fosse um banqueiro conversando com um cliente.

Valor: O sr. acredita que essa seria a principal mudança, de ter mais decisões colegiadas?

Dodge Se não colegiadas, ao menos discussões abertas. É preciso discutir as questões em detalhes. Pode demorar algum tempo para chegar a um acordo, porque as autoridades nacionais têm pontos de vista diferentes, mas eu acho que a história mostra que a cooperação é importante, seja nos primeiros anos do FMI, ou na criação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que construiu um consenso do atlântico norte na década de 60. Não há como ter cooperação sem conversar um com o outro, esse é um papel importante para o FMI.

Somos uma economia muito aberta, nosso grau de abertura é de 40% do PIB, somos muito expostos à economia mundial. Então os riscos são muito altos se tivermos um desempenho ruim da economia mundial. O Brasil também hoje é bem mais aberto do que há 25 anos, seria mais atingido por uma desaceleração da economia global ou mais barreiras comerciais.

Fazendo uma comparação, há 25 anos os banqueiros centrais eram como cardeais, havia essa atmosfera muito opaca, ninguém falava muito, ninguém entendia direito afinal o que estava acontecendo. Acho que hoje há muito mais transparência nas decisões de política monetária, os mercados têm mais informações e operam com isso, e acho que estamos todos melhores. Acho que nas instituições internacionais era ainda pior, havia mais uma mística de "capa e espada" nesse lado internacional do que no doméstico.

Valor: O sr. está otimista com as perspectivas da reforma do Fundo?

Dodge: Eu tenho que ser otimista. Vamos agora para o encontro anual em Cingapura, claramente daremos um passo à frente. No encontro de primavera já chegamos a um consenso para melhorar a fiscalização, espero que demos um outro passo em Cingapura. Mas claro que isso não acontece do dia para a noite - espero que consigamos progressos mais rápidos do que nas negociações comerciais. (Risos)

Valor: Por quê o FMI seria o fórum para lidar com os problemas da China, que hoje tem mais reservas internacionais que o Fundo?

Dodge: Espere aí, espere aí. Essa visão de que o FMI é um banco é precisamente a visão antiga, que não ajuda em nada. Acho que uma organização como o FMI é necessária e se não existisse teríamos que inventá-la, como fizemos com a OCDE no final dos anos 50. Agora precisamos de uma organização que faça uma boa análise e provenha uma mesa ao redor da qual possamos discutir. Isso seria bom para os chineses, porque isso significa que o congresso americano, a Dieta no Japão, ou os parlamentos na Europa saberão que estão ocorrendo discussões no local apropriado para que o ajuste ocorra.

Não adianta dourar a pílula, as discussões serão muito difíceis, mas se há transparência e abertura, e cada país pode levantar-se e defender sua política para seus pares e não para o FMI, sem um fórum como esse não se constrói confiança. Sem essa confiança é muito provável que haja reações muito negativas das legislaturas.

Temos a OMC na área de comércio para lidar com essas questões, mas não temos nada parecido na área monetária. A importância do Fundo não é mais como uma instituição de empréstimos, mas como uma organização de fiscalização, onde podemos juntar as autoridades, fazer análises e prover uma discussão transparente.

Valor: Mas facilitar as discussões é só um meio, qual é o objetivo?

Dodge Nós gostaríamos que os mercados financeiros internacionais ficassem mais tranqüilos. O ideal seria evitar as crises, pânicos, altos e baixos. Para que isso aconteça, duas coisas são necessárias. Primeiro é preciso informação de boa qualidade e, em segundo lugar, que haja confiança de que todos os atores importantes sistemicamente estão dispostos a fazer os ajustes e seguir as regras do jogo. Se não tivermos confiança, as coisas podem se desmontar.

Por quê tivemos a crise asiática em 1997? Não foi por causa da má situação fiscal desses países, mas porque ninguém percebeu o desequilíbrio que eles tinham na área financeira. Isso poderia ter sido evitado facilmente se os números fossem divulgados e acompanhados. Hoje corremos o risco de o congresso americano tornar-se muito protecionista em relação à China, esse é um risco real que pode afetar muito. Com isso, acho que não existe a confiança necessária para derrubar barreiras comerciais na Rodada de Doha.

Valor: Qual foi o tema da sua conversa com o presidente do BC Henrique Meirelles? Houve algum pedido para facilitar a entrada de bancos estrangeiros?

Dodge Não. Falamos precisamente sobre a reforma do Fundo, as políticas domésticas em momentos de dificuldades, esse tipo de coisa que os bancos centrais costumam falar. Uma coisa boa, eu passei 15 anos no Ministério das Finanças, é que a relação entre presidentes de bancos centrais é mais próxima do que entre ministros, porque os bancos centrais são instituições únicas em seus países. Temos relações muito próximas, claro, com o Fed [BC dos EUA], com os bancos do México, Brasil e Chile. Já tivemos relações próximas com o Banco Central argentino.

Valor: O mercado está excessivamente otimista em relação à política monetária nos EUA?

Dodge O que vi de importante nas declarações do presidente do Fed, Ben Bernanke, foi uma frase de que é necessário olhar à frente porque a política monetária demora de 18 a 24 meses para surtir efeito. Como o mercado reage... bem... o sr. Bernanke, como ex-professor, é muito mais claro do que [o ex-presidente do Fed, Alan] Greenspan era. Obviamente boa parte do aperto [de juros] nos EUA que ainda está em processo de assimilação pelo sistema. O impacto no consumo de bens duráveis, mais sensíveis aos juros, ainda leva algum tempo.