Título: Um difícil equilíbrio capaz de agregar valor
Autor: Lopes,Fernando
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2011, Agronegócios, p. B16

No Pantanal não se

pode passar régua

sobre muito quando chove.

Régua é existidura de limites e o Pantanal não tem limites".

(Manoel de Barros)

Faz muito calor nesta época do ano na Nhecolândia. As temperaturas rondam 40º Celsius, chove pouco e os solos arenosos cobertos pela vegetação baixa do Cerrado se espalham onde até dois ou três meses atrás só havia água. Menos quente do que deslumbrante, o Pantanal vive seu tempo de seca, e toda a lógica da vida e da produção acaba de mudar uma vez mais.

O regime de inundação das bacias hidrográficas que alimentam esse bioma complexo é tão grandioso quanto imprevisível. As planícies da Nhecolândia, no centro-sul do Pantanal, podem passar anos sem encher, apenas para se transformar num imenso espelho na temporada seguinte. Se aqui até os rios às vezes mudam de lugar, qualquer previsão é palpite.

Do ponto de vista ambiental, nada melhor do que essa falta de padrão para afugentar invasores e conter a devastação. Mas o "Santuário Ecológico" vendido em pacotes turísticos também depende da preservação dos pantaneiros que vivem nas três mil fazendas espalhadas nas entranhas de seus 14 milhões de hectares, e essa relação é difícil.

Enquanto administrações e pecuaristas locais tentam mostrar que é possível estabelecer uma relação harmônica entre ambiente e produção, melhorias estruturais previstas para os próximos anos tendem a colocar qualquer equilíbrio em xeque. A mesma energia elétrica que tanto poderá facilitar o dia a dia do pantaneiro e estimular as pesquisas de agentes como a Embrapa, também pode encorajar incursões pouco preocupadas com a sustentabilidade das atividades no bioma.

"O Pantanal tem vocação para a preservação. Na pecuária, por exemplo, até agora não foi preciso derrubar a floresta para alimentar o gado. A revolução da sustentabilidade também depende do consumo, e pequenos, médios e grandes produtores podem aproveitar para agregar valor seguindo esses princípios", afirma Leonardo Leite de Barros, presidente da Associação Brasileira de Produtores Orgânicos (ABPO), com sede em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

Estudos recentes mostram que, nas áreas de planalto que emolduram o Pantanal como um todo, 60% da vegetação original já não existe mais, sendo que os problemas são piores nas porções norte e leste, mais altas. Nas áreas de planície como a Nhecolândia, entre 60 e 80 metros acima do nível do mar e onde a força do regime de inundação é festa para os cinco sentidos, as pastagens naturais representam 85% do total e as cultivadas completam a conta.

Mas esses cálculos também mudam, como alerta o pesquisador Carlos Roberto Padovani, da Embrapa Pantanal. Isso porque, nas áreas de planícies, uma parte é água e outra é de muita inundação, o que pode amenizar o resultado final. "E é preciso deixar claro que não existe "área de transição"". diz. Ou seja: para Padovani, ou é Pantanal ou não é.

Criada em 2001, e com a lembrança da forte crise de rentabilidade da pecuária no país na década de 80, a ABPO ganhou musculatura com a assinatura de um contrato de fornecimento de boi orgânico com a JBS, hoje a maior companhia de proteína animal do mundo. Inicialmente, eram 500 animais por mês. Atualmente, a associação é formada por 25 fazendas georreferenciadas, com 110 mil hectares e 58 mil animais certificados. As fazendas localizam-se na Nhecolândia ou em Nabilque, outra sub-região pantaneira.

No modelo criado, explica Leite de Barros, a ABPO assume a gestão do negócio, conforme seus protocolos internos e responde pelas parcerias estratégicas e comerciais. Embrapa, Sebrae, WWF Brasil, Aliança da Terra, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e a certificadora IBD estão entre os parceiros.

"Nosso negócio é baseado no tripé formado por escala, qualidade e regularidade de abastecimento", afirma. O contrato com a JBS prevê exclusividade no fornecimento do boi orgânico, e a marca de comercialização é do frigorífico. Mas, se a ABPO não pode ampliar o leque de clientes nessa frente, há outras com potencial.

Leite de Barros tem planos que podem desembocar em uma denominação de origem para a carne do Pantanal. Outra possibilidade é abrir o negócio para bois não orgânicos, ainda que por eles provavelmente a associação não vá receber os mesmos prêmios da ordem de 10% sobre a cotação do dia - de 12% a 18% no caso das fêmeas - proporcionados pelos orgânicos. Ele explica que há problemas que um simples vermífugo pode resolver, por isso a aposta nos bois não orgânicos.

Fundada em 1929 e dirigida pela terceira geração dos Leite de Barros, a fazenda Rancharia é uma das 25 que fazem parte da ABPO. Tem 14 mil hectares - o dobro da média da Nhecolândia -, 80% com cobertura original, e é uma das cinco unidades da família na região.

"Papabananas" genuínos, descendentes dos pioneiros que desceram de Cuiabá depois do fim da febre do ouro na atual capital de Mato Grosso, os Leite de Barros, nos primórdios, viram sua árvore genealógica cruzar com a do desbravador Joaquim Eugênio Gomes da Silva, o Nheco - daí a Nhecolãndia -, segundo filho do barão de Vila Maria. Foi o barão que deixou o Pantanal com família e escravos, na segunda metade do século XIX, para alertar a Coroa, no Rio, que as tropas do Paraguai haviam invadido Mato Grosso.

Se Leonardo Leite de Barros é o "embaixador" do boi orgânico pantaneiro, seu irmão Luciano, um ano mais velho, é quem toca o dia a dia das fazendas. Dirigente ativo da Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Pantaneiro, Luciano não morou nem estudou fora do país. Formou-se zootecnista e concentrou-se em domar o crescimento das atividades da família. Recém-passado dos 50 anos, mantém a mesma rotina, facilitada por um monomotor ano 1976. E hoje quando acorda, normalmente às 05h00 e com o calor aumentando a cada minuto, seu filho Leo, formado também, já está de pé há uma hora.

Por meio da parceria com a Embrapa, Leonardo Leite de Barros agora quer provar que a carne do boi orgânico do Pantanal tem mais ômega 3. E, claro, resultados obtidos pela estatal federal de pesquisas agropecuárias em melhorias na produção são incorporadas.

Conforme Urbano Gomes Pinto de Abreu, o mais "pantaneiro" dos pesquisadores da Embrapa Pantanal, já há 30 anos no bioma, o trabalho da empresa com bovinos - são cerca de 5,5 milhões de cabeças em todo o Pantanal - envolve sistemas de produção, estação de monta, desmama antecipada, formulações minerais, descarte técnico e vermifugação, entre outras frentes.

"Daí montamos um sistema de produção que serviu de base para um programa financiado pelo FCO [Fundo Constitucional do Centro-Oeste] que já beneficiou 92 produtores. Monitoramos 12 deles e os resultados foram bons". Por exemplo: em uma fazenda onde a taxa de desmama era de 52%, depois do novo modelo houve aumento para 68%.

Um tipo de apoio que os Leite de Barros não tinham quando Abílio, pai de Luciano e Leonardo - e de Mercedes, a filha mais velha -, retomou a Rancharia, em 1960. A fazenda estava em "banho-maria" desde que o pai de Abílio, João Wenceslau, o "seu Sinjão", voltou para Corumbá, findo os efeitos da crise de 1929. Mas durante a Segunda Guerra de lá saía couro para as tropas americanas.

"Era um tempo em que o couro pagava a rês, uma época de muita prosperidade em Corumbá", lembram Leonardo e Luciano. Abílio, advogado e bacharel em filosofia, mora em Campo Grande, mas, aos 82 anos, visita sempre as fazendas.

Outras crises vieram, como a que derrubou a rentabilidade da pecuária brasileira na década de 80, mas a Rancharia estava estabelecida e os planos que hoje dão frutos, em gestação. "O maior apetite do homem é desejar ser", diz Manoel de Barros, o mais famoso poeta pantaneiro. Ou Manoel Wenceslau Leite de Barros, o tio Manoel, irmão de Abílio.

O jornalista viajou a convite