Título: Presidente precisa mostrar que difere de antecessores
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Fonte: Valor Econômico, 19/06/2006, Internacional, p. A9
Na marcha atual, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva será reeleito no primeiro turno das eleições de outubro, segundo tendência registrada por todas as pesquisas de opinião. Evidentemente, a campanha ainda não começou, muita coisa pode acontecer e mudar nos 45 dias do horário eleitoral gratuito, a partir de 15 de agosto. Mas o fato é que Lula conseguiu uma dianteira confortável, apesar da crise ético-moral que consumiu o governo a partir da segunda metade de 2005.
Aturdida, a oposição não consegue compreender a resistência do presidente aos escândalos que abateram, em ondas sucessivas, os seus principais auxiliares e o PT. Ora atribui-se a recuperação da popularidade do presidente à rede de proteção social articulada pelo governo, ora ao fato de que a classe política não conseguiu desfazer o conceito de que todos são iguais, e se todos são iguais não há porque mudar. Seja por uma ou por outra razão, as duas combinadas e até uma terceira ou quarta, isso não exime o presidente de assumir desde já o compromisso com práticas públicas mais saudáveis em eventual segundo mandato.
Lula precisa assumir um compromisso com a limpeza dos quadros públicos e a punição exemplar dos que forem considerados culpados pelo esquema que o procurador-geral da República, Antonio Fernandes de Souza, chamou de "organização criminosa". Precisa estabelecer o compromisso com uma regra de conduta que impeça um indiciado pelo Ministério Público de manter uma das maiores contas públicas de publicidade, e que um ministro se reúna na calada da noite com um banqueiro acusado de chantagear o próprio governo. Sobretudo quando esse ministro é o da Justiça.
O presidente precisa assumir esses compromissos na prática, no dia a dia da gestão pública. E desde já, porque não é isso que as atitudes e declarações de Lula têm sugerido desde que a crise política foi desencadeada, a começar por uma infeliz entrevista concedida em Paris, em 2005, quando relegou a compra de votos pelo PT à mera prática de caixa 2, "o que é feito no Brasil sistematicamente". Como a dizer que o PT nada fez de diferente de outros partidos que o antecederam no poder. Um crime não justifica o outro, muito menos o aval do presidente, a quem cabe dar o bom exemplo.
Lula invariavelmente passou a mão na cabeça de todos aqueles mais próximos a ele, entre os integrantes da "organização criminosa" denunciada pelo procurador-geral da República. E até mesmo na daquele que, pilhado ao bisbilhotar a conta pessoal de um caseiro, foi forçado a pedir demissão do ministério, e que, mesmo saindo pela porta dos fundos, foi saudado pelo presidente como "mais que um companheiro, um irmão".
Mais que candidato, Lula é o presidente da República. Precisa renovar seu compromisso com os valores republicanos a cada dia, não precisa esperar a abertura oficial da campanha. O governante que disputa a reeleição está permanentemente em campanha, cada ato seu será referendado ou não pelo eleitor. E Lula é mais candidato que presidente ao cultivar a dubiedade sobre seu falso dilema de concorrer ou não a um novo mandato, receber um dirigente partidário no Palácio do Planalto para tratar exclusivamente de aliança eleitoral e depois cometer a indelicadeza de mandar desmentir o dirigente.
Sem dúvida o presidente deve, dentro de certos limites, capitalizar os bônus da boa governança, mas também tomar a si o ônus de ser governo. E novamente Lula é mais candidato que presidente quando diz que uma decisão do Congresso sobre o aumento dos aposentados "não foi séria". Fazer o Congresso de vilão é sempre uma boa tática para aumentar a popularidade de um presidente, principalmente em véspera de eleição, mas péssima para a tranqüilidade e o bom funcionamento das instituições, logo, da própria democracia.
Na batida atual, Lula tem tudo para ser reeleito. Mas suas atitudes e declarações em nada sugerem que "nada será como antes" no novo mandato. É a tolerância presidencial, manifestada em gestos e palavras, que estimula seus aliados no Congresso a, desde já, falar em anistia para quem foi flagrado atentando contra a boa causa pública. Não demora, e alguém proporá o pagamento de indenização aos cassados e demitidos na esteira do escândalo do mensalão. No final deste governo, e no exercício de um segundo mandato, mais que nunca Lula deveria demonstrar que ele não é igual a todos os outros.