Título: A "despetização" de Lula
Autor: LulaColunista
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2004, Política, p. A9

Apontada como um dos objetivos da reforma ministerial que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva segue cozinhando em banho-maria, a "despetização" do governo não diz respeito apenas à demissão de petistas da Esplanada dos Ministérios. Ela é doutrinária e começou, na verdade, em meados de 2002, durante a campanha presidencial, quando Lula lançou a Carta aos Brasileiros. Naquele documento, o então candidato tentou tranqüilizar o mercado, apavorado que estava com a possível vitória do ex-líder sindical. Na verdade, não acalmou coisa nenhuma. Nos meses que se seguiram, a situação, agravada pela possibilidade de vitória do PT, deteriorou-se. Confiança, como se sabe, é mercadoria escassa no mercado brasileiro. Instalado no poder, Lula convenceu-se rapidamente de que muito do que ele pregava na oposição não fazia o menor sentido. Nem como discurso nem muito menos como defesa de um modelo socialmente mais justo. Na presidência, Lula tomou medidas que julgava impopulares, mas que, depois, ele próprio percebeu como sendo opostas a essa percepção. Lula teve coragem para seguir o caminho politicamente mais difícil, aquele que o distanciaria dos seus companheiros de PT: uma aposta, mais ousada que a do governo anterior, na ortodoxia da política econômica. A decepção dos petistas não veio na primeira hora porque, na verdade, eles nunca acreditaram na Carta aos Brasileiros. Achavam que se tratava de um truque eleitoral. Em certo sentido, era mesmo. Uma resposta circunstancial para conter as expectativas e desanuviar o ambiente político-eleitoral. A importância daquele documento, no entanto, foi ter levado para o círculo próximo a Lula, ainda na campanha, temas fundamentais para a política econômica que seria adotada por seu governo. Na Carta, está dito, por exemplo, que o governo preservaria os superávits primários nas contas públicas. Sem eles, os credores da dívida pública não acreditariam que o Tesouro seria capaz de honrar seus compromissos, o que teria instalado o caos na primeira semana da nova administração. No PT, ninguém acreditava nisso, mas o desencanto com Lula começou mesmo em abril, quando o governo enviou ao Congresso a sua proposta de reforma previdenciária, mexendo com uma vaca sagrada das hostes de seu partido: o direito sacrossanto dos funcionários públicos à aposentadoria integral. Quando optou por aquela reforma, o presidente Lula não se distanciou apenas de seus companheiros petistas, mas da noção de que é justo subsidiar, num país pobre e desigual como o Brasil, as aposentadorias dos funcionários do Estado, uma minoria entre os trabalhadores do país. Ao insistir nessa reforma, rompendo aliança histórica com os servidores públicos e sofrendo, por isso, forte desgaste diante de seus pares, o presidente optou pela maioria.

Presidente se afasta das teses de seu partido

Paralelamente àquela reforma, a equipe econômica do governo seguiu administrando a economia com austeridade. Para muitos petistas, alguns, inclusive, integrantes do núcleo de poder em Brasília, aquilo seria passageiro. Ledo engano. Aquele era o rumo da política e isso ficou claro no momento seguinte. Lula foi defrontado com a decisão de escolher entre a convivência com uma inflação mais alta e crescimento acelerado, tese defendida por nove entre dez petistas, ou uma inflação menor e crescimento razoável (ou possível), caminho defendido pela equipe liderada pelo ministro Antonio Palocci. O presidente, mais uma vez, optou politicamente pelo caminho mais difícil: inflação mais baixa e crescimento possível. Lula sabe hoje que, quanto maior a inflação, menor é o poder de compra de quem vive de salário; quanto maior a inflação, mais a renda se concentra. O que muitos vêem como uma política conservadora, afinal, dependente de juros altos e austeridade fiscal, Lula viu como positivo para a maioria da população. No recente debate sobre o reajuste do salário mínimo, o presidente encontrou um jeito de sair de uma enrascada. Ele vinculou o tema do reajuste do mínimo ao da correção da tabela. Na medida em que as duas medidas têm impacto fiscal, quanto maior for o aumento de um, menor será o do outro. Há duas semanas, numa reunião para debater o IR, Lula foi convencido por José Graziano, seu assessor econômico de longa data, de que reajustar a tabela sem corrigir as distorções intrínsecas a ela é socialmente injusto. Concentra renda porque tira recursos do orçamento público e beneficia quem ganha salário e paga Imposto de Renda, em detrimento das dezenas de milhões que não ganham salário algum. A correção da tabela é uma promessa de Lula à CUT. O presidente percebeu na movimentação da central, sua velha aliada política, que ela não está interessada em defender os que não têm salário. Esses não têm partido nem sindicato para defendê-los. Dependem exclusivamente das ações distributivas de renda promovidas pelo Estado em áreas como saúde, educação, transferência de renda. Já a CUT está aí para defender os interesses de seus associados, que ganham salário e pagam IR. Na sexta-feira, primeiro dia da reunião ministerial, Lula disse que ninguém deveria se iludir quanto à fidelidade dele às suas origens. Talvez, o presidente estivesse se referindo à época em que, retirante nordestino, ele não tinha ninguém para defendê-lo. Nem partido político nem sindicato.