Título: Soja modificada já tomou quase todo o RS
Autor: Clayton Levy
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2004, Especial Agronegócios, p. F8

Os 160 mil produtores de soja transgênica do Rio Grande do Sul caminham para a colheita de sua oitava safra com um olho no Congresso Nacional e outro no mercado internacional. Eles torcem para que a Câmara finalmente vote a Lei de Biossegurança, pondo fim à novela que se arrasta desde 1996, e para que o preço da commodity se mantenha pelo menos na faixa dos R$ 35,00 por saca. Enquanto esse cenário não se confirma, os gaúchos se preparam para mais um recorde. Dos 10 milhões de toneladas que o Estado deverá colher em março, 90% resultarão de sementes geneticamente modificadas. Esses números já começam a provocar impacto no cenário nacional e apontam para uma tendência aparentemente irreversível. Dos cerca de 60 milhões de toneladas de soja que o Brasil deverá colher na safra 2004/2005, 20% serão transgênicos, o que equivale a cerca de 12 milhões de toneladas, segundo cálculos do Ministério da Agricultura. Quase 70% desse volume deverá sair das lavouras gaúchas, que cobrem cerca de 4 milhões de hectares. Na safra 2003/2004 a soja transgênica correspondeu a 8,2% do total do país. "O governo fala em 20% mas acreditamos que o volume de soja transgênica na próxima safra chegará a 30% do total", especula o presidente do Clube dos Amigos da Terra do Rio Grande do Sul, Almir Rebelo. A variedade desenvolvida pela Monsanto, a Roundup Ready, recebeu um trecho de DNA de bactéria para torná-la resistente ao herbicida glifosato (Roundup, da própria Monsanto). Com isso, a plantação pode ser pulverizada para matar ervas daninhas sem risco para a soja. "O custo de produção com herbicidas caiu de US$ 66 para US$ 22 por hectare, e a quantidade de agrotóxicos baixou de 3,06 quilos para 1,44 quilo por hectare." Foram essas vantagens, segundo ele, que levaram produtores de outros Estados a optar pelas sementes transgênicas. A Monsanto é alvo de muitas críticas. "A soja transgênica já mostrou ser problemática", diz o engenheiro agrônomo Ventura Barbeiro, responsável pela Campanha de Engenharia Genética do Greenpeace. Ele diz que é cedo para assegurar que o consumo de alimentos transgênicos é inofensivo. "Não existe estudo definitivo." Sobre a possibilidade de o uso da soja transgênica reduzir a utilização de agrotóxicos, o agrônomo também é cético. Segundo ele, há estudos nos EUA, onde o plantio é permitido, que apontam um recuo inicial no uso de herbicidas, mas, ao longo do tempo, há aumento. "As ervas daninhas desenvolvem resistências ao agrotóxico (glifosato) e acabam precisando de uma dose cada vez maior para morrer". A Monsanto defende-se afirmando que a questão precisa ser analisada por dois ângulos. Em relação às sementes, a empresa alega que a sua tecnologia para plantas transgênicas está disponível para outras empresas, inclusive a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). "O agricultor que desejar plantar soja não terá, necessariamente, que se render às sementes da Monsanto", diz o gerente de negócios de soja e algodão da multinacional no Brasil, José Carlos Carramate. Já em relação ao direito intelectual pelo desenvolvimento da tecnologia, a situação é outra. "A Monsanto é a detentora dessa tecnologia, que está patenteada", observa. Na safra passada, os produtores que usaram sementes transgênicas pagaram à Monsanto royalties de R$ 0,60 por saca. Para a safra atual, a empresa quer cobrar R$ 1,20, mas os agricultores avisaram que não aceitarão esse valor. "Somos a favor do pagamento de royalties, mas queremos um preço justo", diz Rebelo. A empresa admite que as negociações começaram, mas prefere não comentar o assunto agora. "Nossa atenção está voltada para Brasília, na expectativa de que a Lei de Biossegurança seja votada logo", diz Carramate. A ansiedade de Carramate traduz o clima tenso que tomou conta do assunto no Congresso. Basta um retrospecto rápido para detectar a queda-de-braço travada entre o ministro Roberto Rodrigues, da Agricultura, e a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente. Rodrigues quer que a palavra final sobre os impactos causados pelos transgênicos no meio ambiente fique com a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Marina quer que a palavra final fique com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e Renováveis (Ibama), do Ministério do Meio Ambiente. O imbróglio começou em 1996, quando a CTNBio, escorada na primeira Lei de Biossegurança, emitiu licença para plantio em escala comercial para a soja Roundup Ready. Organizações não-governamentais foram à Justiça contra a CTNBio, alegando que ela não podia decidir questões ambientais e que essa prerrogativa caberia ao Ibama. O Supremo derrubou as ações, mantendo válidos os termos da lei para os alimentos transgênicos, com exceção do caso da soja, que ainda está pendente. Como o conflito de competências continuou, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou para o Congresso o texto de uma nova Lei de Biossegurança. Teve início, então, um vaivém em torno do mesmo assunto: conferir ou não à CTNBio poder para decidir sobre a necessidade de estudo de impacto ambiental. O texto enviado pelo Executivo, restringindo a pesquisa e a comercialização de transgênicos, foi modificado pelo então relator, deputado Aldo Rebelo, que voltou a confirmar a CTNBio como portadora da última palavra sobre a questão. Nomeado ministro da Coordenação Política, Rebelo foi substituído pelo deputado Renildo Calheiros (PC do B-PE). Ligado aos ambientalistas, Calheiros modificou novamente o texto, diminuindo os poderes da CTNBio. Depois de aprovado numa tumultuada sessão em fevereiro de 2003, o texto foi submetido ao Senado, onde o relator, deputado Ney Suassuna (PMDB-PB), provocou nova reviravolta, devolvendo os poderes à CTNBio. Pelo novo texto, caberia à CTNBio, por maioria simples, decidir sobre a pesquisa, produção, cultivo, comercialização e transporte de transgênicos, exigindo ou não estudo de impacto ambiental. O texto muda a composição da Comissão, que passaria a ter 27 membros. Aprovado no Senado em 6 de outubro, o texto estabelece, ainda, que, em caso de discordância sobre pareceres da CTNBio, caberá recurso a um conselho integrado por 11 ministros. Além disso, o projeto aprovado no Senado libera o cultivo da soja transgênica. De volta à Câmara, a matéria passou pela Comissão Especial de Biossegurança, que aprovou parecer favorável do relator Darcísio Perondi (PMDB-RS), ligado aos ruralistas, e agora aguarda a vez para ser votada. "O texto que voltou à Câmara fere o princípio de segurança segundo o qual toda atividade potencialmente causadora de dano ao meio ambiente deve ser submetida a estudos prévios e passar pelo crivo do órgão ambiental, no caso o Ibama", diz o deputado Edson Duarte (PV-BA). Além disso, segundo ele, a CTNBio é parte interessada nos transgênicos por ser formada por cientistas. "O espírito da Lei que criou a CTNBio é colocar representantes de todas as áreas da sociedade para examinar os projetos", rebate Fernando Castro Reinach, diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios e presidente da Alellyx, empresa especializada em biotecnologia.