Título: Executivo envolvido em cartel terá pena maior
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/09/2011, Brasil, p. A4

O governo quer aumentar a pena para os empresários que participam de cartéis. O objetivo é o de equipará-los a pessoas que cometem furtos qualificados. Hoje, a pena é de dois a cinco anos de prisão ou pagamento de multa. Pelo projeto que será enviado ao Congresso para alterar a Lei nº 8.137, que trata de crimes contra a ordem econômica, a punição vai passar de dois a oito anos de prisão, acrescida necessariamente de multa. Com isso, além de ir para a cadeia, o empresário também vai sentir a punição no bolso.

A medida deve atingir centenas de executivos. Atualmente, há 250 pessoas, entre donos e diretores de empresas, respondendo a processos por formação de cartel no Brasil. Mas a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça pretende ampliar significativamente esse número.

A equipe do secretário Vinícius Carvalho vai analisar 600 casos de cartéis internacionais para verificar um por um quais incluíram o Brasil para vender os seus produtos a preços mais elevados. O objetivo é proteger o consumidor brasileiro de acordos que são feitos no exterior e atingem o Brasil. A SDE já instaurou processos contra supostos cartéis de fabricantes de produtos plásticos para carros e celulares e também para investigar acordos mundiais para a fixação de preços de telas de LCD que levaram a sucessivos aumentos nos valores que os consumidores pagaram às televisões de tela plana.

"A política industrial do governo é de proteção das empresas nacionais, mas devemos proteger também os consumidores brasileiros", defendeu Carvalho.

Em entrevista ao Valor, o secretário informou que vai iniciar uma articulação com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e o Ministério Público para que as empresas condenadas por cartel também sofram ações de reparação de danos aos consumidores. Essa articulação já tem data para ocorrer: na primeira semana de outubro, na próxima edição da Estratégia Nacional de Combate aos Cartéis (Enacc), um encontro entre autoridades para definir metas contra empresas que fazem acordos anticompetitivos no mercado.

Pela reparação, além de as empresas pagarem as multas do Cade, que vão de 1% a 30% do faturamento, elas terão de pagar o equivalente ao que conseguiram a mais no mercado por força do cartel. Estimativas feitas pela SDE com base em estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicam que a reparação pode chegar a valores equivalentes a 15% das vendas das empresas.

A seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: Por que aumentar a pena de executivos que participam de cartéis?

Vinícius Carvalho: Nós verificamos que as punições atuais não são suficientes para dissuadir os executivos de participar de cartéis. Há casos em que eles calculam até o valor de uma possível punição. Os empresários verificam que os lucros do cartel podem compensar eventuais multas. Ao fim, concluem que vale a pena continuar com práticas anticompetitivas e ilegais.

Valor: As penas atuais são muito baixas?

Carvalho: Hoje, se um grupo de ladrões pula o muro de uma casa e leva um botijão de gás, eles estão sujeitos à pena de dois a oito anos de prisão por furto qualificado. Mas se várias empresas fazem um cartel no setor de gás de cozinha (gás liquefeito de petróleo) - e temos casos nesse setor -, elas retiram o equivalente a bem mais de um botijão de vários consumidores, causando um prejuízo muito maior, e a pena é de dois a cinco anos ou multa. Claramente, há um problema de desproporcionalidade nas penas.

Valor: Quando aceitam entrar num cartel, os executivos não consideram o risco de serem punidos?

Carvalho: Tivemos acessos a estudos que mostram que companhias internacionais fazem seguros para que seus diretores continuem com o cartel. Com isso, as empresas procuram anular as sanções econômicas que os órgãos antitruste impõem. Outro problema é que o dinheiro do cartel fica no cofre das empresas. Ele não precisa ser lavado. Isso torna o crime ainda mais grave.

Valor: Esse dinheiro não deveria ser utilizado como reparação às pessoas e empresas que sofreram danos por causa do cartel?

Carvalho: Sim. A dissuasão dos cartéis passa pelas penas e pela reparação de danos. Há um conjunto de agentes que pode entrar com ação para obter essa reparação. São o Ministério Público, as associações, os próprios consumidores que foram lesados, além do Cade e da SDE. A reparação tem o efeito de fazer Justiça redistributiva e de desencorajar os ilícitos. Nos Estados Unidos, há uma forte cultura sobre isso e, na Europa, há guias sobre ações de reparação.

Valor: E no Brasil? O que pode ser feito para termos mais ações de reparação?

Carvalho: Nós queremos incentivar essas ações e pretendemos discuti-las com o Judiciário e com o Ministério Público de Defesa do Consumidor. Não podemos deixar que essas ações fiquem à espera dos consumidores. Esse será um dos principais debates na Enacc: reunir os órgãos e definir uma nova forma de atuação. O grande desafio é criar uma estratégia para que essas ações sejam propostas sem diminuir a importância das decisões do Cade, que já pune os cartéis.

Valor: Como isso pode ser feito?

Carvalho: Nós vamos propor que, na ação de reparação pelos danos do cartel, a empresa leniente (que entregou provas do crime em troca de redução de pena) seja cobrada pela fatia equivalente ao prejuízo que causou. Já as demais empresas, que não colaboraram com as investigações, serão cobradas pelo dobro do prejuízo.

Valor: E o prejuízo do cidadão comum?

Carvalho: Uma parte será reparada pela decisão do Cade, que aplica multa às empresas e reverte o dinheiro em projetos de benefício aos consumidores. A outra pode ser reparada por meio de ação civil pública.

Valor: De quanto seria essa reparação?

Carvalho: A OCDE tem um estudo indicando que os cartéis em licitações resultam em 10% a 20% de sobrepreço. Então, a média é a de que um cartel resulta em 15% de prejuízo aos consumidores. Ou seja, se uma empresa vendeu R$ 100 milhões, sob a organização de um cartel, o prejuízo dos consumidores pode ser de R$ 15 milhões. Mas, isso terá de ser calculado caso a caso.

Valor: O que pode ser feito quando o consumidor brasileiro é prejudicado por cartéis que são organizados fora do Brasil?

Carvalho: Aqui, precisamos ter um olho no microscópio e outro no telescópio. O microscópio são os cartéis formados no Brasil. O Cade já condenou vários no setor de combustíveis. O telescópio são os cartéis internacionais. A política do governo federal é de proteção ao mercado interno. Nós concordamos com essa política e também nos preocupamos com a proteção do bem-estar da população. Quando protegemos a indústria nacional também devemos proteger os consumidores brasileiros.

Valor: Como identificar no Brasil um cartel internacional?

Carvalho: Nós dependemos de acordos de leniência e de informações sobre esses cartéis. Estamos adquirindo um estudo com 600 casos de cartéis internacionais e vamos verificar um por um para identificar quais atingiram o Brasil. Já analisamos cem casos e devemos abrir mais processos até o fim do ano. O ideal seria que as empresas que participam desses cartéis nos procurassem para assinar acordos de leniência. Já fizemos 23 acordos desse tipo, desde 2003, e gostaríamos de assinar mais.

Valor: Outros países também elevaram as punições contra os cartéis?

Carvalho: Na última década, 43 países aumentaram a pena para quem participa de cartel. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pena aumentou de três para dez anos de prisão. E as multas também cresceram. Nos anos 1990, os órgãos antitruste norte-americanos aplicaram US$ 1,6 bilhão em punições. Nos anos 2000, houve um salto para US$ 4,2 bilhões. No Brasil, precisamos investir na capacidade de detectar cartéis e puni-los de maneira mais rigorosa.