Título: A inadimplência, o risco e a taxa de juros
Autor: João Antonio Motta
Fonte: Valor Econômico, 16/12/2004, Opinião, p. A-16

Espantou-me declaração publicada no Valor Econômico (13/12, pág. A12), atribuída ao ilustre presidente do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que "a Justiça favorece a alta dos juros". Na entrevista, o presidente do STF diz que somente com uma atuação eficaz do Poder Judiciário, "em que houver segurança do cumprimento de contratos", poderá haver a redução na transferência do risco às taxas e, daí, sua redução nominal aos clientes. Afirma ainda Nelson Jobim, com todas as letras, "...que o sistema legal protege os devedores e, com isso, favorece os juros elevados." Não poderia ser mais infeliz a asserção do emérito presidente da mais alta Corte de Justiça do país. Demonstrando um descolamento da realidade em direito bancário e a estrutura das instituições financeiras, o presidente do STF evidentemente apenas reproduziu o sovado coro, no qual os bancos justificam as obscenas taxas praticadas, sem se debruçar sobre o tema e conferir a realidade dos números. Aliás, virou lugar-comum no país justificar o injustificável e dizer que as altíssimas taxas de juros cobradas são consequência da inadimplência ao setor e das mazelas do sistema jurídico na recuperação dos créditos. Pois bem, um importante dado que deveria ter observado pelo presidente Jobim diz respeito à diferença percentual entre a taxa Selic e as taxas praticadas ao setor privado. Ora, sabendo-se que a taxa Selic reflete a média de empréstimos ao setor público ao ano e está em 1,33% ao mês; sabendo-se que a taxa média de empréstimos às pessoas jurídicas, caucionada em recebíveis e, portanto, com baixíssimo risco de crédito, está em 4,29% ao mês , verifica-se um percentual de diferença em 223% ao mês. Se para emprestar ao setor público, o banco, com custo operacional, cunha fiscal e demais componentes de seu custo, tem lucro com 1,33% ao mês (porque não é crível que empreste ao governo por benemerência), é inadmissível e sem nenhuma explicação possível que, para emprestar ao setor privado, com risco baixíssimo, como é a Conta Garantida - 'cheque especial' das empresas, materializado por um limite de crédito normalmente caucionado por duplicatas sacadas contra seus clientes e com criteriosa seleção por parte dos gerentes dos bancos - tenha que acrescer a taxa de mesmo empréstimo em 223% ao mês. Isso sem contar as demais receitas dos bancos, como atividades de tesouraria, tarifas etc. Então é o risco do não recebimento do crédito que impacta a taxa em 223% ao setor privado? A tabela ao lado mostra os números do Bacen para 2004, quanto à inadimplência no setor. A média é de 1,42% ao mês, valendo dizer que de cada R$ 1 mil, apenas R$ 14,20 não voltam ao banco acima de 90 dias, sendo relevante observar que isso não é a rubrica "LP - Lucros e Perdas", e tampouco representativa daqueles que procuram o Poder Judiciário, que é uma parcela infinitamente menor.

O presidente do STF reproduziu o sovado coro, no qual os bancos justificam as obscenas taxas praticadas

Mas vamos supor que se trabalhe com o dado "cheio", isto é, como se o total da inadimplência recorra ao Poder Judiciário e, neste Poder, todos, visceralmente todos, venham a obter sucesso em "não pagar". Voltemos ao nosso exemplo com a Conta Garantida. Como a taxa de juros cobrada foi de 4,29% ao mês, em um cálculo grosseiro, verifica-se que, a cada R$ 1 mil emprestados, o desencaixe foi de R$ 14,20 e, em contrapartida, o retorno foi de R$ 42,29 - (R$1 mil - R$14,20) multiplicado por 4,29% - , o que vale dizer que, a cada R$ 1mil haveria a "cobertura" dos R$ 14,20 não pagos e ainda "sobraria" R$ 42,29, o que representa uma taxa líquida de 4,229%, ou apenas a impactação de -1,42%. No exemplo da taxa Selic a 1,33%, com a inadimplência total, a majoração percentual continuaria a estratosféricos 218%, caindo apenas cinco pontos percentuais, de 223% para 218%. Então, basta a matemática para desvendar que não é a inadimplência - e, tampouco, o Poder Judiciário - o vetor que implicam majoração dos juros. Aqueles que vão ao Judiciário com alguma reclamação contra os bancos, vão, ou devem ir, lastreados em disposição legal, seja pela vedada prática de juros capitalizados, aumento arbitrário do lucro (CF, art. 173, § 4º) ou qualquer outro estratagema de cálculo elaborado pelos bancos que implique majoração artificial da taxa em seu benefício. Isso é direito bancário, todo o resto é lamúria ectópica de conjuntura econômica, desfavor a "consumidores" e outras quimeras sem consistência. O certo é que não são o Poder Judiciário ou a inadimplência os fatores da enorme desproporção entre a captação e a aplicação (spread) dos bancos, mas, sim, o singelo fato da ganância exacerbada da natureza humana. Afinal, quem de nós não gostaria de ser banqueiro? Não obstante, com todo o respeito ao emérito professor da Escola Osvaldo Vergara, em nosso Rio Grande do Sul, o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, o coro dos bancos não pode ser endossado sem análise crítica, sendo que os contratos devem, realmente, ser cumpridos na exata medida em que se afeiçoem à Constituição e à lei federal, nada mais, nada menos.