Título: País vai manter complacência no Mercosul
Autor: Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 16/12/2004, Especial, p. A-18
Entre as prioridades da política externa para 2005, destaca-se o Mercosul e, para que este bom propósito se realize, o restabelecimento das relações com a Argentina é fundamental. Nesta equação, que pode ser formulada a partir das palavras do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, nesta entrevista ao Valor, o Brasil tem que continuar a ter a atitude compreensiva e contemporizadora que vem adotando diante da agressividade argentina. E concentrar esforços na busca de soluções. "Isto não vai ser feito por meio de salvaguardas automáticas, de gatilhos, mas por outras iniciativas, como processos de financiamento conjunto, estímulos a joint-ventures, políticas de compras governamentais, um conjunto que leve a uma política industrial do Mercosul", propõe Amorim. No momento em que o bloco comemora 10 anos, Amorim acredita firmemente no seu refortalecimento. "O Mercosul é uma realidade política e cultural que vai além dos interesses empresariais". Para ele, o mundo do século 21 será o mundo dos grandes blocos, e na América do Sul só haverá um grande bloco com a união de todos os países. O chanceler do governo Lula já definiu, para 2005, que manterá a prioridade também à integração da América do Sul, a levar adiante os acordos feitos na Organização Mundial de Comércio (OMC), às negociações comerciais com a União Européia e com os Estados Unidos. A seguir os principais trechos da entrevista: Valor: Quais são as prioridades da política externa em 2005? Celso Amorim: Temos que aprofundar várias coisas que iniciamos. O Mercosul é sempre uma prioridade e continuará a ser. Esse governo tem dado muita importância política ao Mercosul. Não só aos aspectos comerciais, também aos aspectos políticos e institucionais. Continuaremos a ter como prioridade a integração da América do Sul, demos um passo importante com todos os fatos - que levaram à reunião de Cuzco. Levar adiante os acordos da OMC em relação à Rodada Doha é outra prioridade. E as nossas negociações com a União Européia e Estados Unidos, também. Diz-se que quem tem muitas prioridades não tem nenhuma. Na realidade, o mundo é muito amplo, é vasto. A prioridade é continuar em todas essas negociações, continuar lutando pela diversificação da nossa pauta. Valor: O Mercosul não está ficando para trás no quadro de relações comerciais? Amorim: O Mercosul caiu em termos relativos, embora em termos absolutos nossas exportações para a Argentina devam bater recorde esse ano. Caiu porque o Brasil diversificou. Ampliamos para a China, por exemplo. O total de comércio com países em desenvolvimento é praticamente igual ao comércio com países desenvolvidos. Valor: Essa quase inversão é recente? Amorim: Ela acelerou muito nos últimos dois anos e sobretudo no último ano. Há a China, com um comércio com um padrão até curioso, semelhante ao da Europa, distribuição entre matéria prima e produtos manufaturados e semi-manufaturados. Um comércio com países da América do Sul, como a Venezuela, que subiu 170%. E não é 170% de nada. A exportação vai chegar perto de US$ 1 bilhão. É natural que o Mercosul perca espaço. Valor: A opção pela diversificação não prejudica as relações no Mercosul? Amorim: Se olharmos a participação relativa dos Estados Unidos no mercado brasileiro, ela também caiu. Era de 26% em 2002, e hoje é 20%. Perdeu importância para nós? Não. Nossas exportações para a União Européia cresceram 32%. Agora, o crescimento com a América do Sul, em termos percentuais, foi o dobro, mais de 60%. E creio eu, pela primeira vez em termos absolutos, o comércio com a América do Sul cresceu mais do que com a União Européia. Valor: A integração com a América do Sul não tem apenas um objetivo geopolítico? Os acordos nem entraram em vigor... Amorim: Se fosse político não teria problema, porque os objetivos políticos também são importantes. Mas não é verdade. E em países como os nossos, a mera sinalização do Estado de que há uma nova prioridade, já altera os fluxos comerciais. O comércio do Brasil com a Argentina quadruplicou em quatro ou cinco anos. Também com os outros países do Mercosul. Isso não foi só pelas tarifas. Foi um sinal de prioridade, então isso criou entusiasmo dos empresários. Eu acho que é isso que nós temos que recriar, e estamos recriando, dentro do Mercosul. Eu nunca vi uma reunião empresarial com tanta densidade quanto as duas últimas dessa coalizão empresarial Brasil-Argentina. Valor: Qual é a questão central do impasse comercial entre Brasil e Argentina? O que leva a Argentina a, de dois em dois meses, ter uma atitude agressiva e impulsiva com relação ao Brasil? Amorim: Nós também criamos. Quando eu leio hoje, no jornal, um alto funcionário brasileiro ameaçando de retaliações (Mário Mugnaini), eu acho sinceramente que isso cria também um constrangimento. Não é o espírito com que o presidente Lula tem trabalhado nas relações com a Argentina. Valor: Mas qual a questão central da dificuldade das relações? Amorim: Do lado argentino, eles cometeram muitos erros, não necessariamente este governo, mas é algo que se acumulou. Fizeram uma aposta que deu errado e que resultou em desindustrialização, resultou na crise que todo mundo assistiu. Hoje há um esforço de retomar o crescimento de uma maneira diferente da que ocorreu nos anos, digamos, dessa ilusão de o peso valer um dolar. Isso passa por um certo nível de reindustrialização da Argentina. Se os instrumentos que eles estão escolhendo são os melhores ou não, não me cabe julgar, mas eu acho compreensível que o país passe por isso. Eu não estou defendendo a maneira deles de agir. Quando fomos a Buenos Aires, reconhecemos que há um problema, mas vamos procurar uma solução juntos.
Não dá para ninguém imaginar que a Argentina vá renunciar a um certo grau de industrialização. Não é possível."
Valor: As salvaguardas são uma boa solução? Amorim: Eu pessoalmente não creio que salvaguarda seja a melhor solução. É tentadora, tem um certo automatismo, deve ter gente no Brasil querendo também. Na realidade vêem nessa atitude da Argentina um pretexto para fazer coisas semelhantes, em detrimento da integração. Agora, temos que admitir que existe um problema. Eu não posso imaginar, e ninguém no Brasil vai imaginar, que a Argentina vá renunciar a ter um certo grau de industrialização. Não é psicologicamente possível, não é politicamente possível, e não é economicamente viável. Valor: No momento em que o Mercosul completa 10 anos de institucionalização, quais são os caminhos para a recuperação do bloco? Amorim: No início das negociações do Mercosul, claramente qual era o desejo dos empresários e no próprio setor público argentino? Eles percebiam no Brasil um dinamismo que a Argentina não tinha, especialmente no setor industrial. E queriam atrelar a Argentina a esse dinamismo, contaminar positivamente a indústria argentina. Por motivos variados, caminharam em outra direção. É preciso voltar a criar esse dinamismo. Valor: Como? Amorim: Isso não vai ser feito por meio de salvaguardas automáticas, gatilhos que têm problemas, embora esteja disposto a discutir idéias. Isso vai ser criado por processos de financiamento conjunto, por estímulos a joint-ventures, por políticas de compras governamentais, que façam com que o conjunto pense numa política industrial do Mercosul. O Brasil é o país maior, vai continuar tendo um peso maior nisso tudo. Valor: O senhor está confiante na sobrevivência e refortalecimento do Mercosul? Amorim: Não tenho a menor dúvida sobre isso. Eu acho que o Mercosul é uma realidade política e cultural que vai além dos interesses empresariais. Mesmo que se coloque que a importância relativa do Mercosul caiu para o Brasil, a verdade é que em termos absolutos continua a crescer, e é preciso ver a qualidade do comércio. Nosso comércio com a Argentina é 91% de manufaturas. Valor: Foi significativo o salto nas relações comerciais e integração com a Argentina nesses 10 anos? Amorim: No início, as empresas estabelecidas lá eram aquelas de sempre: Banco do Brasil, Varig, o que tinha de Brasil no exterior. Hoje tem 190 empresas. Agora, é natural que numa relação tão próxima de países que seguiram políticas macroeconômicas tão díspares, haja atritos, haja dificuldades. Valor: Qual é a saída? Amorim: Hoje em dia, o que existe próximo para a Argentina, o que eles vêem? Eles estão tendo uma tentativa de reindustrialização. Onde eles vêem a dificuldade? Eles não a vêem nos americanos ou europeus que não entram no mercado deles, ou entram menos. Eles vêem no Brasil. Então tomam essas medidas que nos irritam. Não estou defendendo as medidas deles não, mas nós temos que procurar uma solução para esta questão, que provavelmente não é a que eles querem. Valor: Não é a salvaguarda? Amorim: Esta foi uma das propostas. Mas vamos pensar juntos e encontrar soluções. Se a gente resolver ficar batendo um no outro o tempo todo, pode, só vai ser em prejuízo dos dois. Valor: O senhor concorda com a avaliação que há na diplomacia brasileira muita tolerância e compreensão com a Argentina? Amorim: Eu tenho uma convicção desses anos de experiência de negociações comerciais. O mundo do século 21 vai ser o mundo dos grandes blocos. Os Estados Unidos já é um grande bloco em si mesmo; a União Européia, além de ser um grande bloco é um bloco em expansão. A China já é um grande bloco; mesmo sendo o maior país da América Latina, o Brasil não é um grande bloco, comparado com eles. Então, temos que nos unir. Valor: Que dimensão teria esse bloco? Amorim: Quando se criou a Comunidade Sul-americana de Nações, as estatísticas mostraram que os números são o dobro do Brasil. O PIB, população, território, tudo é o dobro. Dívida é o dobro. É um outro Brasil, e não se pode considerar que um outro Brasil é pouca coisa.
Risco existe em tudo na vida. Mas o Haiti é um Estado latino-americano, sempre foi filho enjeitado da América Latina."
Valor: Declarações recentes suas jogando a conclusão das negociações com a União Européia para 2006 causaram rebuliço na Europa. A prioridade é a OMC? Amorim: Quando o Peter Mandelson disse que o Mercosul era a quarta prioridade não causou rebuliço, a minha causa rebuliço. Tenho conversado com ele, mais de uma vez, o Brasil atribui alta prioridade à negociação com a União Européia. O que eu acho é que as negociações multilaterais são a âncora dessas outras negociações, na Alca, na União Européia. Há hoje uma grande rodada na OMC e os temas mais importantes para o Brasil, temas que alteram a estrutura do comércio internacional, estão na OMC. Então, eu digo que a nova rodada da OMC é a âncora. Não é que cronologicamente se tenha que subordinar uma à outra. A mãe das negociações, a âncora, é a negociação global. Valor: Integrar o Conselho de Segurança da ONU como membro permanente é prioridade política do Brasil? Amorim: Hoje nós temos uma situação que nunca tivemos, estamos mais perto do que nunca estivemos. Se houver uma reforma, o Brasil está mais perto de ser parte dessa reforma. Isso é muito importante. Valor: Tem-se falado que a consolidação da ação do Brasil no Haiti, ano que vem, será modelo de um tipo de atuação diplomática para se repetir, ficar na história. Por quê? Levar o Brasil a uma guerra não envolve risco desnecessário? Amorim: Risco existe em tudo na vida. Não é um passeio, não é uma missão fácil. Mas o Haiti é um Estado latino-americano, tem uma composição ética e até cultural muito parecida até com a cultura brasileira. É um Estado que sempre foi filho enjeitado da América Latina. As reações iniciais que vi, mandando deixar isso para os Estados Unidos, deixar isso para a França, para o Canadá... Por quê? É um país latino-americano, parte da nossa comunidade, e hoje em dia as distâncias estão cada vez menores. No Haiti, creio eu, podemos fazer uma diferença. Valor: Mas os países desenvolvidos e a ONU não largaram o Brasil lá e caíram fora? Amorim: Não caíram não. Vou assinar um memorando entendimento com o BID, vamos ter com o Banco Mundial projetos em conjunto, e há um interesse enorme. Acho que a presença brasileira, porque é diferente, está conseguindo uma mobilização positiva como nunca houve. Tem que ajudar a manter a ordem, porque se não tiver o mínimo de estabilidade não pode ter reconciliação política. Se não tiver reconciliação não pode ter estabilidade. E se não tiver ajuda humanitária importante entrando no Haiti, não se tem nenhuma das duas. Valor: Por que o governo levou brasileiros a uma guerra, porque assumiu o Haiti? Amorim: O Brasil tem responsabilidades, o Brasil é um país grande. O Haiti é parte da nossa região, a América Latina não nos pode ser estranha. O Brasil teve mil homens em Angola, tem 1200 no Haiti, não é uma diferença assim significativa. O que há de novo é que pela primeira vez o Brasil tem , ao mesmo tempo, o comando militar e o maior número de tropas. Valor: A candidatura do embaixador Seixas Correa à direção da OMC contra o candidatura Pascal Lamy, da Europa, não pode criar uma disputa de ricos e pobres? E o Brasil fará alguma gestão para o Uruguai retirar seu candidato? Amorim: Era melhor que houvesse uma candidatura única no Mercosul, e na América do Sul e na América Latina. Na pressão não vamos fazer. A colocação da candidatura Lamy, inclusive, reforça a idéia de que seja um candidato que tenha as características que o Seixas tem. Por que a candidatura do Seixas foi lançada? Para nós, a OMC é muito importante. Sempre digo que vitórias como a do algodão e a do açúcar, nunca, jamais, em tempo algum, existiriam numa negociação de Alca, ou nunca negociação de Mercosul-União Européia. Só poderia existir no contexto da OMC. Olhando o panorama dos candidatos, chegamos à conclusão de que o G-20 tinha uma responsabilidade especial de levar a bom termo essas negociações. E portanto era um dever nosso apresentar candidatura. Valor: Não é muito o Brasil pleitear ao mesmo tempo OMC e Conselho de Segurança da ONU? Amorim: Foram motivos diferentes. A questão da OMC é transitória, o mandato é de quatro anos, renovável ou não. O Brasil, há três anos, estava com a Unctad, a Conferência de Armas Químicas e o Sérgio Vieira de Mello como alto comissário de direitos humanos. Hoje não temos nenhum cargo equivalente. Valor: Como a diplomacia brasileira se coloca diante dos modernos temas que a desafiam, como a questão nuclear? Os EUA têm pressionado o Brasil para não avançar muito no seu programa de enriquecimento de urânio? Amorim: Os EUA, não. Há ONGs, segundo escalão de governo, dando declarações. Eu ouço a voz dos porta-vozes autorizados. Colin Powell (Secretário de Estado) esteve aqui e disse que tem confiança que o enriquecimento de urânio no Brasil é só para fins pacíficos. Valor: Outra questão nova é a contaminação das relações políticas pelas injunções do comércio. A Rússia se sentiu atingida pela protelação da licitação dos caças da FAB a ponto de prejudicar as negociações na recente visita do Putin? Amorim: O Brasil tem lutado pelo aumento das exportações de carne, na China, na Rússia, inclusive. Obviamente que uma decisão dessas, como a dos caças, não pode ser tomada em relação apenas a um produto, ou um grupo de produtos. É uma decisão estratégica, que envolve o desenvolvimento tecnológico nacional, que não está no meu poder, como ministro das Relações Exteriores. O presidente tomará a decisão no momento adequado ouvindo o Conselho de Defesa. Mas eu acho que ela vai muito além de uma questão comercial.