Título: Campanha na Argentina usa e abusa da máquina pública
Autor: Cesar Felício
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2011, Internacional, p. A8

Os empresários brasileiros do setor leiteiro que se reuniram no fim de setembro com argentinos no caixote de concreto e neon da avenida Diagonal Roca, no centro de Buenos Aires, onde funciona a Secretaria Nacional de Indústria e Comércio, estranharam o ambiente. Na entrada da sala da reunião, dois grandes cartazes mostravam a presidente Cristina Kirchner caminhando de perfil, sob o lema "Avante morocha!", ou "Pra frente, morena!", em português.

A propaganda de campanha de reeleição de Cristina Kirchner está espalhada nos corredores da repartição pública. Ali estão também o gabinete do secretário de Comércio, Guillermo Moreno, conhecido pela relação dura com o setor privado, e a sede do Indec, o instituto oficial de estatística, cujos números de inflação são manipulados desde 2007.

Esse é só um exemplo da fusão entre governo e campanha que marca a eleição presidencial argentina, que entrou esta semana em sua fase final sem surpresas: a presidente Cristina deve se reeleger no primeiro turno, com índices nas pesquisas entre 52% e 57%.

O próprio desenho institucional colabora para essa mistura. Não existe desincompatibilização e é o próprio governo quem organiza as eleições e até define a data do pleito. "A Direção Nacional Eleitoral é uma repartição do Ministério do Interior. E, como o Orçamento de 2011 não foi aprovado pelo Congresso, a presidente governa com base na peça do ano anterior, sem um acompanhamento de gastos das instâncias de controle", comentou a deputada Alicia Ciciliani, coordenadora de campanha do principal candidato de oposição, o governador de Santa Fé, Hermes Binner, do Partido Socialista.

O próprio Binner concorre em condições privilegiadas, por não ter se afastado do governo da província. Em plena campanha, distribuiu 310 títulos de terra para moradores de Rosário, na semana passada. Terceiro colocado em algumas pesquisas, o governador de San Luís, Alberto Rodríguez Saá também não se desincompatibilizou e lançou durante a campanha um programa para dar US$ 1.200 a todo estudante da rede pública que terminasse o ensino médio.

O clima de campanha não está apenas nas paredes dos prédios administrativos do governo argentino. O candidato a vice na chapa da presidente é o ministro da Economia, Amado Boudou. O vice-ministro Roberto Feletti é o primeiro nome na chapa da governista Frente Para a Vitória na eleição para deputado na cidade de Buenos Aires. Na província, o ministro da Agricultura, Julian Dominguez, também é candidato. Cristina promoveu um único ato de campanha antes das primárias de agosto, em um teatro em Buenos Aires, mas na semana em que anunciou que era candidata, em junho, fez o lançamento do plano Televisão para Todos, em que abriu linhas de crédito no Banco de la Nación para a aquisição de televisores LCD em 60 prestações. A presidente conseguiu manter-se em evidência com uma agenda pesada de inaugurações, sempre transmitidas por uma rede de rádios e emissoras de televisão simpáticas ao governo.

Na segunda-feira, dia 3, ela inaugurou uma instalação portuária em Santa Cruz e, por meio de uma videoconferência, uma geradora de eletricidade em Neuquén. No dia seguinte, esteve em Santa Fé para inaugurar uma fábrica de motos. Na quarta-feira, inaugurou um hospital em Córdoba e, por videoconferência, um laboratório de tecnologia na cidade de Río Cuarto. Na quinta, foi a vez de inaugurar um polo científico em Buenos Aires. Na sexta, cortou a fita de um hospital em Ciudad Evita, bairro de La Matanza, na periferia da capital.

A presidente não divulgou uma programa de governo para seu novo mandato. Suas propostas foram reveladas em solenidades públicas, ao lançar uma série de metas setoriais reunidas sob o nome de "Plano Estratégico Argentina 2020". Anúncios governamentais e solenidades estão vedados desde sexta, quinze dias antes da eleição de 23 de outubro, mas Cristina poderá continuar participando de eventos privados. No Brasil, o mesmo tipo de proibição vigora três meses antes da votação.

"Aqui ninguém discute isso. Não temos um instrumento legal para pedir licença", justificou Binner, governador de Santa Fé. "Esta eleição é muito particular, porque o processo das eleições primárias desestimulou as alianças, e as eleições descasadas nas províncias incentivou os governadores a disputar a eleição nacional. Em relação ao Brasil, temos muitas diferenças em termos de desenvolvimento institucional", comentou o ex-presidente Eduardo Duhalde, em quinto lugar nas pesquisas, cujo candidato a vice é governador.