Título: Lessa se defende das críticas ao BNDES
Autor: Célia de Gouvêa Franco, Ivo Ribeiro, Vera Brandima
Fonte: Valor Econômico, 16/11/2004, Especial, p. A12

Irritado até as vias do descontrole, e demonstrando o extremo desconforto com as dores provocadas pelo rompimento dos tendões da perna em recente acidente doméstico, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Carlos Lessa, parecia, na manhã da última sexta-feira, estar no limite, depois de quase dois anos de briga encarniçada com a área econômica do governo, o ministro da pasta ao qual o banco se subordina, os banqueiros, as multinacionais, a elite empresarial brasileira e, neste dia, em especial a Imprensa. O controverso professor de economia que dirige o maior banco de desenvolvimento da América Latina recebeu os jornalistas do Valor por duas horas na suíte do Hotel Glória, no Rio, em que se hospeda desde o acidente. Embora reafirmasse que só deixaria o banco se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva o demitisse, ele disse estar "cheio de tudo", enquanto batia na mesa com uma pilha de papéis. Afirmou que o que gosta mesmo de fazer é ensinar. Socando a mesa, ele acusou os jornalistas de estarem, com suas críticas aos representantes da classe política, destruindo a democracia e chamou-os de covardes por não ter coragem de elogiar os bons políticos. Disse que a imprensa só gosta de ver sangue, que incentiva e se alegra com divergências. Foi o fecho de um encontro que não pode bem ser considerado uma entrevista. Lessa esperava os jornalistas com um discurso esquematizado, com várias frases-chave grifadas, todas elas buscando responder a críticas da qual vem sendo alvo. Ele permitiu poucos apartes, poucas perguntas. Queria dar seu recado: defender a eficiência do BNDES, a necessidade de crescimento da economia e da redução dos juros cobrados pelo banco, a TJLP. Seu desabafo e suas explosões tiveram lugar antes da publicação de matérias, em vários órgãos de imprensa no fim de semana sugerindo que ele pode ser demitido em breve. A seguir, suas principais declarações: Eficiência do BNDES - O BNDES tem sido, com muita freqüência, acusado de ser pouco eficiente. Tenho a impressão de que as pessoas não sabem bem como se mede eficiência. Eficiência é, do ponto de vista etimológico, a capacidade de se atingir os fins programados. E eu afirmo em alto e bom tom que o BNDES não é apenas uma das instituições mais eficientes do país e tem uma das burocracias mais eficientes - e isso não é de hoje - mas também que a nossa administração aumentou em muito a eficiência do banco. Muito, como mostra o indicador mais geral de eficiência, a divisão do número ou do valor das operações pela quantidade de recursos disponíveis. A quantidade de recursos que eu tenho são 1.000 técnicos, que formam uma das elites da burocracia do país, e 600 auxiliares administrativos. Essa equipe não aumentou, eu herdei essa equipe. Eu herdei da administração anterior um orçamento de R$ 33 bilhões. Executando o orçamento do ano passado, terminamos 2003 com o maior lucro nominal da história do BNDES. Liberações em 2004 - Para 2004, aprovamos um orçamento robusto, com um aumento de 42%. Para que esse orçamento se concretizasse, era necessário o cumprimento de três condições. A primeira era reduzir a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). Quando o BNDES empresta com base na TJLP, não subsidia ninguém. Aliás, eu desafio a quem diz que o BNDES subsidia alguma coisa que vá aos léxicos. Muita gente no governo vai ter que comprar dicionário... E vocês sabem como o povo chama dicionário, não? Pai dos burros. Acontece é que a TJLP é estupidamente alta. Desde janeiro, consegui diminuir a TJLP de 10% para 9,75%. Eu queria baixar a TJLP para emitir um sinal forte de que o Brasil apostava no crescimento. A combinação de taxa Selic elevada e em alta com resistência absolutamente encarniçada a reduzir a TJLP sinaliza para os empresários ter cuidado. A segundo condição para cumprir o orçamento seria termos de outras instâncias do governo - que eu não especificarei quais - apoio irrestrito para que projetos vitais à retomada do desenvolvimento caminhassem com rapidez. Tem projetos para os quais eu já posso acender velinhas pelo seu segundo aniversário. Não vou dizer quais são os entraves. Se há instituições que querem que o país cresça existem outras que não têm essa preocupação. Uma parte do time joga contra o crescimento. A terceira condição é que o BNDES depende de namoro. Não adianta eu querer conceder um financiamento se o empresário não quiser. O engraçado é que a imprensa nunca pergunta ao empresário por que ele não quer crédito. E sabe por que? Porque a resposta é sempre a mesma: quero, sim, desde que me dêem mercado, taxa subsidiada, tudo. Para uma quantidade enorme de empresários eu venho fazendo o papel de candidato a namorado: convido, converso, peço. As pequenas e médias empresas tiveram este ano um crescimento espetacular - quase 40%. Demos um show de bola com as pequenas empresas, exportação, infra-estrutura, no que foi possível tirando os problemas ambientais e os jogos retardatários... Entre as grandes empresas, recebi grandes projetos da área de papel e celulose, amo esse pessoal. Recebi projetos da cadeia petroquímica, da construção naval. E a siderurgia começou a se mexer. Mas indústrias voltadas ao mercado interno, que dependem de aumento do salário real e do emprego, estão tímidas. Bens de consumo durável está melhor, com os programas de desconto em folha, que estão liquidando com uma figura detestável, o agiota. Vamos executar 87% ou 88% do nosso orçamento deste ano. Propusemos para o próximo ano, um orçamento de R$ 60 bilhões. E vou ter um lucro colossal. Neste semestre estamos ganhando R$ 1,9 bilhão, e sem escorchar as empresas. Eu estou recuperando créditos muito mal feitos que herdei de outras administrações. Estou recuperando esqueletos, como o caso da AES. É porque nós somos eficazes, preservamos o interesse nacional é que o banco está sendo atacado. Consolidação das siderúrgicas - No aço, a tendência mundial é de aglutinação acelerada: imensas empresas vão controlar o mercado americano, asiático e europeu. Por acaso não têm minério de ferro de boa qualidade e enfrentam movimentos sociais fortíssimos contra a poluição. De todas as chaminés, a mais obscena é a de alto-forno. Onde está o melhor minério do mundo e mais bem posicionado em relação aos mercados europeu e americano? No Brasil. Onde está o filé mignon do negócio do aço? No minério de ferro, na placa semi-acabada ou nos produtos finais, como vergalhão, chapa, arames e nos aços especiais com aplicações específicas? Está lá na ponta. Por isso acho que a Vale não pode se definir como uma empresa mineração e de logística. A Vale tem de ter expressão no negócio siderúrgico. Faço parte, pelo BNDES, do bloco de controle da Vale e vivo brigando com a sua diretoria por causa disso. Brigas que vivem dando farto material à imprensa. A empresa quer se associar minoritariamente aos grandes grupos, que controlam os grandes mercados de aço do mundo. É um direito dela querer isso, mas é um direito meu, representando o BNDES, ver de outra forma. É um erro estratégico de longo prazo. O negócio do aço é muito complexo. A Arcelor sabe disso, tanto que preferiu sair comprando siderúrgicas pelo mundo, comprou da Vale a CST, a jóia da coroa. Já fez o serviço. Exigi uma carta, feita pelo presidente Guy Dollé, dizendo que o BNDES terá participação minoritária na holding da Arcelor no Brasil, terá acordo de acionistas e o país não será um centro de custos. Mas isso não garante nada. Só terei poder de mercado se tiver uma imensa empresa nacional controlando o aço acabado. Deveria ser a Vale. Siderúrgica trinacional - O presidente Lula pensa na integração sul-americana e, conversando com o presidente (Hugo) Chávez, ele disse que tem muito interesse em montar uma trinacional de aço: Brasil, Argentina e Venezuela. Na Argentina tem um grupo maravilhoso, a Techint, a Venezuela tem a Sidor, em que a Usiminas e Techint são acionistas. Essa trinacional é a dos meus sonhos. O projeto passa por uma decisão dos presidentes e por uma conversa, que acredito já deva ter início, entre os grupos candidatos dos três países e a Vale, que é fundamental para isso. Ela é a representante natural para liderar esse negócio. A localização natural desse grupo siderúrgico deve ser lá em Itaqui (no Maranhão). Estamos dispostos a entrar como sócios se formos bem recebidos pelos três parceiros e em especial pela Vale. E pode ter uma usina de aço inoxidável espetacular na Venezuela. A outra coisa que sonho é com uma fusão de empresas brasileiras. Mas fusão é como namoro: se sozinho tenho dificuldades de namorar imagina ser Santo Antônio casamenteiro. É muito mais difícil. Sonho com o casamento de Usiminas e CSN. A indústria no futuro - Eu acho que o Brasil precisa pensar sobre qual sistema industrial terá no futuro. Das principais empresas nas 8 a 9 potências industriais do mundo, mais de 50% delas já estão no Brasil. Se há país que tem uma política de atração é o Brasil. A primeira onda de imigração aconteceu nos anos 20. Vieram empresas como a Nestlé, Coca-Cola, Siemens, porque havia um mercado no país e elas integraram operações industriais para superar eventual problema de câmbio. A segunda grande imigração aconteceu para valer com Juscelino Kubitschek, e seu plano de metas. Continuam no Brasil e são campeãs. Não foram hostilizadas. E se multiplicaram, do ABC foram para outros pontos do país. Terceira onda: no tempo do Geisel o Brasil ia ser potência e para cá vieram fabricantes internacionais de bens de capital. Todas essas ondas criaram fábricas que empregaram pessoas. Aí vem um novo momento: o de Fernando Henrique Cardoso. Privatizou, pegou o que já existia do setor público e vendeu. E disso, o que fez investimento para valer mesmo foi telecomunicações, basicamente com financiamento do BNDES. Agora, eu gostaria de entender o sentido de atrair (...) Como se atrai empresas? Com crescimento. Sabe por que as empresas não investem? Porque o mercado não cresce. E se não investem, mandam dinheiro para onde precisa, remetendo lucros. As multinacionais estão reticentes: ganham dinheiro e enviam para fora. Multinacionais brasileiras - Agora inventamos de criar multinacionais brasileiras. A Ambev vira belga. Criamos uma multinacional brasileira? Ela não comprou uma empresa fora. Ela pegou ações da brasileira e trocou pelas ações da controladora belga. Na verdade não criamos uma multinacional brasileira. Convertemos três donos dela em co-proprietários da multinacional InBev. Só que esses três senhores são o que são com 600 financiamentos do BNDES de 1960 ao ano 2000. Apostamos neles e eles viraram belgas. É esta a nossa política industrial? Que 12 empresas brasileiras virem multinacionais dessa maneira? Aço nosso não sei aonde; empreiteira bem sucedida na Transilvânia, é isso? No regime de economia privada, nenhum país pode impedir que seus empresários vendam seus ativos a quem quer que seja. Precisamos criar empresários brasileiros, com B maiúsculo, cuja vida esteja ligada ao Brasil e ao seu povo. É esse empresário que eu quero. Sabe onde ele existe? Na pequena e média empresa. Por isso, tenho de robustecê-las, coordenar suas ações ao invés de competirem, pois assim elas se tornam fortes. Amigo do presidente - Eu sou um quadro do terceiro escalão do governo, diretamente mandado pelo senhor presidente da República, que foi quem me escolheu e me convidou. Ninguém aceita um cargo da importância do BNDES pelo convite de alguém que não conhece. Eu conheço o Lula. Sou amigo dele há muito tempo. Não sou do PT. Tenho imensa admiração pelo povão brasileiro. Eu tenho dúvidas é com a elite brasileira, se está alinhada com os interesses nacionais. Isso eu tenho sérias dúvidas. Já que estão alinhadas com seus interesses patrimoniais não tenho a menor dúvida. Irritação - Sabe por que estou irritado? Porque sou atacado por todos os lados, inclusive por vocês, porque não tenho nenhum direito de defesa. Vocês nem sequer me consultam. Simplesmente publicam o ataque. Anteontem eu li o clipping de vocês e vi o (Henrique) Meirelles (presidente do Banco Central) me soltando os cachorros. Aí me senti autorizado a soltar os cachorros sobre ele. É a primeira vez que ataco um quadro desse porte diretamente. Ele resolveu destruir o BNDES com uma explicação surrealista (a taxa de juros de longo prazo determina a de curto prazo) e vai acabar virando prêmio Nobel, pois nenhum economista nunca ousou isso, é um absurdo. A minha taxa de juros de longo prazo é para operações direcionados. Sabe o que ele diz? Que há um cruzamento de subsídios entre as linhas de crédito direcionado (as linhas favoráveis à agricultura, demos favor para comprar equipamentos agrícolas e aí acontece uma tragédia: o Brasil se transforma no grande produtor de soja, de algodão). E pela classificação do Meirelles, isso é uma tragédia. Sabe o que ele diz? Que é obrigado a manter a Selic lá em cima porque a nossa taxa é baixa. O Meirelles empurra a taxa de juros para cima para estabilizar a inflação, a inflação continua; ele não tem preocupação com o emprego dos brasileiros, com o mercado interno, com o crescimento da economia. O mais engraçado é que o Fed, o equivalente ao Banco Central que ele dirige, tem entre suas obrigações estatutárias preservar o adequado emprego dos trabalhadores. Faça o que eu digo e não faça o que eu faço. Aí me deu uma luz. O que quer dizer acesso, multinacionalização de empresa brasileira. É fazer uma lista de empresas do país à venda? Por que investimentos estrangeiros no Brasil? Mas eles já estão no Brasil, se investirem seus dividendos crescem, se pedirem empréstimos, o BNDES empresta se o projeto é bom. Participação nas empresas - Dizer que o BNDES quer ser sócio de todas as empresas é uma crítica pífia. O BNDES sempre foi acionista de empresas, é proprietário da maior carteira de ações do Brasil. E isso para permitir que a empresa exista, para que se endivide menos e fique mais robusta. Nós queremos que os brasileiros sejam donos das boas companhias. Nós fizemos o fundo PIBB. Metade foi comprada por pequenos compradores (menos de R$ 20 mil) e metade por grandes. Quantos estão no PIBB hoje? Só os pequenos. Nas outras operações farei diferente porque não tenho interesse em que os grandes pulem fora.