Título: Uma indústria competitiva produz valor e é responsável
Autor: Zilbovicius,Mauro : Marx,Roberto
Fonte: Valor Econômico, 10/11/2011, Opinião, p. A14

As montadoras de automóveis instaladas no Brasil têm nos últimos anos batido recordes de vendas. O aumento da renda de parte da população antes excluída do mercado automotivo, juntamente com crédito caro, mas farto e a perder de vista fizeram com que a relação habitantes por veículo seja estimada atualmente em menos de 7, contra 9 em 2002. Diversos indícios apontam que as filiais brasileiras das montadoras geraram resultados que, transferidos para suas matrizes nos últimos 3 ou 4 anos, ajudaram-nas a atravessar a crise nos países desenvolvidos, em que até falências ocorreram.

Mercados em franco crescimento com boas margens de lucro atraem concorrência. Coreanos e chineses começaram a oferecer produtos com qualidade comparável ou superior aos vendidos no Brasil, além de serem mais baratos. Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro começava a discutir uma nova política industrial, as montadoras locais apontaram para o perigo da concorrência externa para o emprego e para sua própria lucratividade. O governo, sensibilizado por estes problemas, definiu uma política governamental para o setor que protege a produção e o emprego local com forte elevação do IPI para as importações, e pretende favorecer o aumento da atividade local de engenharia e inovação.

Mas será possível uma indústria automotiva competitiva, inovadora, que ofereça produtos de qualidade e baixo preço, preservando empregos e renda local? Apontamos a seguir alguns elementos para avançar nesta resposta.

As montadoras oferecem, no Brasil, empregos em condições muito melhores do que na China. Para alguns, empregos de qualidade prejudicariam a competitividade. Mas a solução não está no rebaixamento das condições de trabalho locais. Os empregos no Brasil são muito competitivos, mas com aqueles existentes nos países das matrizes das montadoras tradicionais.

O que não é competitivo são os carros produzidos no Brasil. Aqui, a geração de valor é muito mais baixa do que nas matrizes. Mesmo os carros chineses que começam a entrar no país são comparativamente mais atualizados tecnologicamente do que os correspondentes brasileiros.

Para se gerar e manter empregos melhores deve-se produzir alto valor. Alto valor, nesta indústria, significa, ao mesmo tempo, projetar produtos melhores e atrativos para diversos mercados e muito importante consolidar-se como centro de decisão da indústria, ou seja, como um local em que quase tomam decisões sobre questões estratégicas relativas a tecnologia, produto, fornecedores e produção.

Mas para desenhar uma estratégia de produção de valor, as montadoras localizadas no Brasil precisariam rever o papel que atribuem às suas subsidiárias locais: de geradoras de lucros (a partir de margens crescentes para proporcionar funding para as matrizes), para produtoras de valor, aproveitando competências locais disponíveis a custos menores do que nas matrizes. É preciso atingir escala global de operação: somente assim será possível justificar investimentos do porte necessário para esta transformação.

Mas isso significa uma decisão difícil para as montadoras: competir consigo mesmas, com suas próprias matrizes, deslocando centros de engenharia, decisões de negócios, etc. Seria isto possível? A pressão do centro de decisão na matriz é muito forte. Não nos iludamos: as montadoras globais, com matrizes nos países centrais, estruturam atividades de engenharia e inovação (como vêm fazendo no Brasil) que são deslocadas das matrizes em casos pontuais e específicos. A densidade de inovação tecnológica ainda permanece junto ao centro de decisão. E ele não está no Brasil, em nenhum caso.

Com relação à competição no mercado interno: não se trata de limitar as importações. É possível compensar a produção local por práticas competitivas externas, mas a questão é provocar as montadoras locais para que sejam competitivas em relação ao pacote preço/qualidade oferecido pela concorrência. Isso levaria, necessariamente, a uma redução de margens de lucro praticadas localmente. A queda da margem de lucro pode ser o maior incentivo para a reação no sentido de redefinir o negócio automotivo no Brasil.

Benefícios fiscais podem levar ao rumo certo, mas podem também reforçar um rumo errado. Incentivo fiscal só se concede (ou só se deve conceder) a quem fará algo que não faria sem o incentivo e, por isso, gerará mais renda, privada e pública. Não há porque incentivar elementos isolados de inovação como, por exemplo, laboratórios de motores ou de aerodinâmica, se isso será pouco usado (porque é marginal em relação à estratégia das empresas) ou porque, mesmo estando alinhado a uma estratégia de localização de atividades de engenharia no Brasil seria investimento realizado mesmo sem o benefício.

Se fizer sentido para as montadoras investirem em infraestrutura de inovação no Brasil, elas o farão. Incentivos devem ser vinculados a compromissos de grande alcance, com estratégias e projetos monitoráveis. O problema é que a inovação no Brasil não tem feito parte da equação estratégica das montadoras tradicionais.

A indústria automotiva, no Brasil e no mundo, vive um momento de inflexão. O declínio da demanda nos países desenvolvidos, a possibilidade do carro elétrico, as novas demandas sociais e ambientais abrem grandes possibilidades para novos arranjos de operações e de negócios.

É preciso capital e ousadia para aproveitar oportunidades. Há lugar para empreendimentos competitivos, social e ambientalmente responsáveis, globais e com centro de decisão no Brasil. Na aeronáutica, primeiro o Estado e depois a iniciativa privada, produziram a Embraer. Há que se integrar a indústria automotiva a uma estratégia nacional, ou simplesmente se adia o problema, oferecendo oxigênio a um modelo em decadência, que clama por mudanças.

Mauro Zilbovicius e Roberto Marx são professores da Fundação Vanzolini, instituição formada por professores do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP, e coordenadores do Laboratório de Estratégias da Mobilidade (MobiLab/Poli/USP)