Título: Salvação depois do trauma
Autor: Jeronimo, Josie
Fonte: Correio Braziliense, 16/09/2010, Política, p. 10

Jovens vítimas da exploração sexual precisam de projetos que abram a possibilidade de levarem uma vida menos desfavorável

Miséria, violência sexual em casa, fuga do lar e prostituição antes de completar a maioridade. A ordem dos capítulos desse doloroso drama que assola a sociedade brasileira é quase sempre a mesma, mas garantir o direito à segurança afetiva e o desenvolvimento saudável da maturidade sexual dos mais jovens apresenta-se como um desafio intransponível às autoridades. Mais de 500 mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente no país para garantir a própria sobrevivência, a de seus pais ou a dos aliciadores. Todos os dias, o Disque Denúncia Nacional recebe pelo menos 418 casos de exploração infantil.

Só neste ano, foram mais de 100 mil atendimentos, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A coordenadora da Área de Dados e Tratamento da Informação do Disque Denúncia Nacional, Fernanda Régis Cavicchioli, explica que, além do canal formal de denúncias, há também as casas de acolhimento, que atendem diretamente as crianças. Com isso, os números de menores em risco social pode ser ainda maior.

A exploração dos menores ocorre na maioria dos municípios brasileiros. De acordo com as denúncias, 4.885 das 5.564 cidades do país têm registros de abuso infantil. O turismo sexual no Rio Grande do Norte e a característica local de passagem do Distrito Federal concedem às duas unidades da federação o primeiro e o segundo desonrosos lugares nas estatísticas de denúncias de exploração e abuso sexual, levando em conta a média em um grupo de 100 mil habitantes (veja quadro). No Rio Grande do Norte, a cada 100 mil pessoas, há 25 crianças ou adolescentes em situação de risco social. No Distrito Federal, são 20 menores explorados a cada 100 mil habitantes.

O entra e sai de caminhões nas centrais de abastecimento e nas fábricas são os principais focos do problema no Distrito Federal. Em Sobradinho, nas fábricas de cimento, apesar do pente-fino de agentes sociais, não é raro notar a presença de crianças de 9 a 12 anos se movimentado em meio aos caminhões que passam para carregar material. O lixão da Estrutural também recebe monitoramento frequente das autoridades do GDF.

Segundo a gerente de Proteção de Média Complexidade da Secretaria de Assistência Social do Distrito Federal, Valéria de Sousa Lima, nem sempre os assistentes sociais conseguem flagrar um adulto pagando pela prostituição de um menor. A exploração sexual é muito mais difícil porque é na base da denúncia. O abuso é mais denunciado, afirma Valéria.

Reinserção

A exploração sexual é a segunda maior ocorrência em relação aos crimes envolvendo menores, com 34,1%. O abuso sexual corresponde a 65,03% dos delitos. Mas o abuso e a exploração, afirma a profissional que lida com o acolhimento das vítimas, quase sempre são etapas de uma tragédia. É um bojo indicador. Levantamento mostra que, em 80% dos episódios de exploração sexual, houve um caso de abuso, informa a gerente de proteção social.

A reinserção desses jovens passa também por um processo de qualificação profissional. Sem políticas de acolhimento, o menor explorado sexualmente terá dificuldade para abandonar a prostituição e encontrar outra forma de gerar renda e alcançar um emprego. Quando você encontra uma criança ou adolescente com seu direito violado é porque ele não teve acesso às políticas públicas que deveria ter, resume a assistente social.

"Quando você encontra uma criança ou adolescente com seu direito violado é porque ele não teve acesso às políticas públicas que deveria ter Valéria de Sousa Lima, gerente de Proteção de Média Complexidade da Secretaria de Assistência Social do Distrito Federal

Ranking

Estados com o maior número de denúncias de exploração sexual e abuso, por grupo de 100 mil habitantes

Rio Grande do Norte - 25,09 Distrito Federal - 20,03 Amazonas - 16,48 Rondônia - 16,37 Mato Grosso do Sul - 16,16 Bahia - 15,55 Maranhão - 14,92 Rio de Janeiro - 14,69 Ceará - 12,83 Espírito Santo - 12,08 Piauí - 11,87 Alagoas - 11,62 Acre - 11,29 Tocantins - 10,77 Goiás - 10,71 Paraíba - 10,68 Pernambuco - 10,67 Amapá - 10,56 Pará - 10,53 Rio Grande do Sul - 9,26 Santa Catarina - 9,24 Mato Grosso - 8,83 Sergipe - 8,71 Paraná - 7,23 São Paulo - 6,71 Minas Gerais - 5,74 Roraima - 5,56

Fonte: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

Artigo

Oferta, demanda e tabus

Por Estela Márcia Scandola

A exploração sexual comercial de mulheres, crianças e adolescentes insere-se nas relações de trabalho e guarda regras muito parecidas com as demais cadeias produtivas. O que se agrega para compreensão desse mercado são as discussões ainda eivadas de tabu que giram em torno da sexualidade, que por vezes a exacerba e por vezes a esconde como forma de aumentar o valor do produto que, nesse caso, são os prazeres da sexualidade. Nesse mercado de trabalho, mulheres, crianças, adolescentes, travestis e, mais recentemente, homens, são mercadorias e/ou produzem mercadorias.

A exploração sexual trabalha com o imaginário do consumo. Isso é que é terrível para os românticos do funcionamento da sociedade que querem trabalhar com a ideia da exploração sob a ótica da moral sobreposta à ideia do capital, da expropriação do trabalho. Porque, se trabalhamos com a ideia de que cada menina ou menino é um pobrezinho passando fome, estão trocando sexo e fantasias por um sanduíche, trabalhamos com a ideia da moral individual.

A outra possibilidade, então, de pensar sobre as crianças e adolescentes é que estão prontos para o consumo, estão prontos para suas decisões. Ou seja, se estão no comércio sexual, tomaram suas decisões. Na verdade, para muitas meninas e meninos, o que lhes criamos foi somente essa possibilidade de inclusão: consumidores e, para isso, todos os meios são justificáveis para essa finalidade.

Temos sempre que refazer a pergunta: quem cria quem: o mercado, a demanda ou a oferta? É preciso conhecer melhor a demanda, trabalhar de forma estrutural a questão da sexualidade. É preciso proteger a nossa oferta. Sobretudo, é preciso atuar sobre o mercado. Porque o mercado vai determinando se a exploração vai ser mais ostensiva, mais discreta, mais dissimulada. O mercado vai trabalhando na sedimentação de valores como o machismo, o adultocentrismo, da exploração sexual como uma ação binária explorador-explorado, reforçando valores morais seculares que subjugam mulheres e crianças.