Título: Corrigindo a ignorância
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 23/11/2004, Brasil, p. A2

Continua, infelizmente, uma discussão desinformada sobre a razão da demissão, em 1979, do ministro Mario Henrique Simonsen, sem dúvida um dos mais brilhantes economistas que tivemos. Todos nós admirávamos sua superior inteligência, sua fina ironia e sua competência técnica. O presidente Figueiredo fez todo o esforço que era possível e compatível com sua posição para conservá-lo. A disposição de Simonsen de abandonar o governo se mede pelo fato de ter feito a mudança para o Rio de Janeiro antes mesmo de demitir-se. Sua saída do governo faz justiça à sua aguda inteligência. Ele antecipou as conseqüências da mudança da política econômica do presidente Jimmy Carter (1977-1981). Em 1979, este indicou para presidente do Federal Reserve um professor muito conhecido dos brasileiros da área econômica, o Sr. Paul Adolph Volcker, que havia sido sub-secretário do Tesouro de 1969 a 1974, e presidente do Federal Reserve Bank of New York, de 1975 a 1979. A inflação americana avançava rapidamente como se vê abaixo:

Volcker é um brilhante economista, especialista em problemas monetários internacionais. Sempre foi conhecido como um linha "duríssima". Era transparente para Simonsen (e outros economistas) que ele iria aumentar dramaticamente a taxa de juro básica americana e contaminar a "prime rate" que era cobrada pelos bancos em seus empréstimos. Essa intuição confirmou-se plenamente como se vê na tabela. Qual era nossa situação? A dívida externa (devido à crise do petróleo) quadruplicara entre 1973 e 1979 (de 12,5 para 50 bilhões de dólares). A conclusão evidente de Simonsen (ministro da Fazenda de Geisel, de 1974 a 1979, e em seguida ministro do Planejamento de Figueiredo) foi uma só: o Brasil iria quebrar! E isso já era absolutamente visível na formulação da proposta orçamentária em discussão para 1980. Simonsen retirou-se do governo sem "fechar" o orçamento, uns poucos dias antes de vencer-se o prazo constitucional para a sua entrega ao Legislativo. A História posterior sancionou a sua perspicácia. Quando fui convidado para ser ministro do Planejamento do presidente Figueiredo, este mostrou-se perfeitamente a par do que estava acontecendo: o mundo dos emergentes estava caindo aos pedaços e, com ele, o Brasil. O mundo desenvolvido, por sua vez, iria sofrer sua maior recessão desde 1929. A conta de juros externos do Brasil (pela acumulação da dívida para importar petróleo e da taxa de juros), vinha aumentando a 40% ao ano desde 1973. Por outro lado, as exportações brasileiras vinham perdendo sua posição relativa nas exportações mundiais.

A taxa de inflação acumulada de 12 meses passara de 31% em 1975 para 45% entre 1975/76. A taxa de câmbio (graças à melhoria das relações de troca) fora utilizada no período como fator coadjuvante de combate à inflação. Ficava cada vez mais claro que não seria possível manter o ritmo de crescimento (6,7% ao ano entre 1974 e 1979), mas era, também, cada vez mais claro que estávamos quebrados, qualquer que fosse a taxa de crescimento de 1980, porque a conta de juros externos iria crescer dramaticamente, dado o nível já alcançado da dívida externa (50 bilhões de dólares). O que fazer, então, com o ano de 1980? Antecipar a redução do crescimento (para quebrar logo depois nas mesmas condições) ou acelerar o crescimento e aproveitar a penúltima oportunidade? Foi isso que levou à estratégia de 1980, quando o Brasil cresceu 9,2%. A aceleração da inflação em 1980/81 tem pouco a ver com isso e muito mais com o encurtamento da correção monetária de 12 para 6 meses e com a resistência do Congresso às leis salariais sugeridas por um poder autoritário já moribundo. A alternativa era o suicídio honroso: reduzir o ritmo de crescimento para 3% e perder 6% do PIB sem qualquer melhora no problema externo. Tivemos de fazê-lo a partir de 1981, quando todo o mundo emergente (exclusive os asiáticos) não produtor de petróleo quebrou sob o peso da sua própria dívida e da política americana. O ajuste 1981/82/83 foi produzido por uma segunda desvalorização cambial que gerou uma retração do PIB de 6,4% no período, mas eliminou o déficit em conta-corrente em 20 meses, o primeiro realizado pelos países emergentes que sofreram a crise mundial. Entre 1984 e 1985 o PIB cresceu 13,3% sem desequilíbrio externo! O que se pode afirmar, sem receio de contestação, é que a estratégia de 1980 elevou o PIB em 13% no período 1980/85: 1. aumento acelerado de 1980 (9,2%-3%) .............................6,2% 2. queda do PIB na recessão (1981/82)................................. -6,4% 3. aumento do PIB 1984/85, com equilíbrio em conta corrente.......................................................................................... 13,2% Total................................................................................................. 13,0% A experiência mostra que a recessão é elemento necessário para uma desvalorização bem-sucedida. O que restou do ajuste foi uma inflação indecente, mas relativamente estável, de 220% ao ano, o que indica uma certa acomodação da distribuição de renda, preparatória de uma política anti-inflacionária.