Título: A ameaça climática e as divergências sobre Kyoto
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2004, Opinião, p. A12

A reunião da Convenção sobre Mudanças Climáticas em Buenos Aires trouxe novos e preocupantes dados sobre o acelerado aquecimento do planeta e agravou a impressão de que o jogo político e econômico das nações ameaça a tomada de decisões que estejam à altura dos riscos envolvidos. Nessa empreitada que deveria ser comum, países desenvolvidos, como os EUA, e países em desenvolvimento, como o Brasil, têm enorme responsabilidade, embora uns e outros tentem escapar dela. Os estudos apresentados durante a Convenção são atemorizantes. O relatório da Organização Meteorológica Mundial constatou que 2004 foi o quarto ano mais quente na Terra desde que a medição começou a ser feita, em 1861. No século passado, a temperatura global subiu mais de 0,6 grau Celsius e há a possibilidade real de que, ao final deste século, esse aquecimento atinja 2 graus. Uma "avant première" das consequências dessas mudanças já ocorreu na forma de enchentes no Nordeste brasileiro, seca da África Oriental, furacões no Caribe e a maior estiagem em 54 anos na China. É uma amostra bastante convincente das catástrofes que estão em gestação. Ao mesmo tempo, haverá cada vez maiores dificuldades de abastecimento de água nas megalópoles, apontou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em um processo que já se manifesta no degelo dos Andes. O IPCC prognostica que o nível do mar pode subir até 88 centímetros se o ritmo de emissões se mantiver, o que elevaria a temperatura global em até 5,8 graus em 2100. Na conferência, o Brasil apresentou seu inventário de emissão de gases poluentes entre 1990 e 1994 - ele é responsável por 3% das emissões mundiais, o que o coloca como o sexto maior poluidor mundial, atrás de países em desenvolvimento como Rússia, China e Índia e do campeão mundial, os EUA. O país tem uma posição confortável em sua matriz energética - metade dela apoiada em fontes renováveis, mas a tragédia cotidiana do desmatamento da Amazônia desequilibra o jogo. Há dúvidas se a destruição da floresta se estabilizou. Em 2002, a área bruta de florestas dizimadas era de 631 mil quilômetros quadrados. Em uma década, desde 92, a região perdeu 230 mil quilômetros quadrados de vegetação - a área de um Estado de Alagoas por ano. A Amazônia detém 20% da água doce do mundo e seus 100 mil km de rios dependem das florestas, cujo processo de evaporação e transpiração é responsável por 50% das chuvas, informa o Greenpeace. Esses crimes contra a humanidade, onde a ignorância é a coadjuvante menor da ganância, não têm encontrado uma reação eficaz preventiva do governo brasileiro. Países que defenderam o protocolo de Kyoto, que em sua primeira fase colocou a meta de redução de 5% da emissão de gases entre 2008 e 2012 apenas nas mãos dos países desenvolvidos, fogem como o diabo da cruz das possibilidades de terem que participar das metas de redução na segunda fase, após 2012. A recusa é particularmente intensa por parte da China, que vem devastando em proporções alarmantes seu território. O argumento de que os EUA e os industrializados poluíram por mais tempo a atmosfera e continuam na dianteira é correto. Mas não aceitar nenhuma restrição ou meta que não seja a que os países em desenvolvimento, individualmente, se imponham, em nome de evitar freios ao crescimento, é cair na mesma posição do presidente George W. Bush para rejeitar Kyoto. Com um agravante - a ação ecológica dos cidadãos de países como os EUA é mais disseminada e efetiva que a de seu governo. As pressões sobre Bush têm se intensificado e ações contra poluidores têm sido uma constante nos EUA. Oito Estados americanos estão processando cinco empresas de energia, que geram um quarto da energia do país, por lançarem ao ar 650 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano. Não é o que se vê no Brasil, onde a impotência e a inação predominam. Atitudes como a do governo do Amazonas, de criar unidades de conservação ambiental de 3,1 milhões de hectares no sul do Estado, ameaçado por madeireiras e pela expansão da soja, e regular as atividades produtivas só merecem elogios e apoio. Mas sem um compromisso político global do governo para reduzir o trágico desmatamento da região amazônica, fica aberto o caminho para que outros grandes poluidores, como China e Rússia, possam continuar agredindo o planeta em nome de um crescimento selvagem. Consagrar permanentemente dois pesos e duas medidas para deter a catástrofe ambiental pode acabar minando o protocolo de Kyoto e os avanços imprescindíveis que ele poderá trazer.